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Quem inventou os Cheetos picantes? A história verdadeira do filme — e da invenção

"Flamin' Hot" chegou à Disney+ para contar uma narrativa "inspirada em factos verídicos". Mas a verdade parece ser bem diferente.
Ninguém sabe muito bem o que aconteceu

Apesar de serem pouco conhecidos por Portugal, os Cheetos avermelhados e super picantes são um dos sabores mais procurados da marca nos Estados Unidos. Comercializados pela gigante Frito-Lay, os pequenos snacks estão na origem do mais recente filme a chegar à Disney+ esta sexta-feira, 9 de junho, “Flamin’ Hot”.

Na estreia da atriz Eva Longoria como realizadora, a produção afirma inspirar-se em factos reais. No centro da narrativa está Richard Montañez, um dos funcionários de limpeza numa das fábricas da empresa que acaba por se destacar ao lançar aos executivos a ideia de criar um novo sabor.

O ex-presidiário torna-se então no génio por detrás do sucesso global do novo produto da multinacional. Um argumento que é adaptado das memórias do próprio Montañez, “A Boy, A Burrito and A Cookie: from Janitor to Executive”, lançado em 2013. Jesse Garcia é o protagonista, acompanhado de um elenco que conta com nomes como Annie Gonzalez, Emilio Rivera, Vanessa Martinez ou Bobby Soto.

O problema é que os factos verídicos em que o filme se diz inspirar podem não ser tão verídicos quanto se julga. A história de um humilde funcionário, imigrante mexicano, que ultrapassou o seu passado ligado ao crime para se tornar num inspirador criador e executivo, mostrou ser demasiado apelativa para ser recusada pelos estúdios. Mesmo com os constantes desmentidos, não só emitidos pela própria empresa, como através de investigações independentes de vários órgãos de comunicação social americanos, sobretudo um artigo do “Los Angeles Times” que, em 2021, não encontrou qualquer fundo de verdade na narrativa avançada há mais de uma década por Montañez.

Antes de dar origem ao filme, a história da invenção dos Flamin’ Hot Cheetos começou a ser desenhada por Montañez. Orador carismático, foi revelando como diversos executivos o tentaram sabotar, na sua tentativa de levar a ideia ao próprio CEO da empresa. Haveria de ver a sua ideia aprovada e comercializada, diz. A partir daí, o mexicano criou um verdadeiro negócio, enquanto corria o país a dar palestras em eventos de grandes marcas americanas e até em universidades como Harvard. Cada aparição tinha um preço: 10 a 50 mil euros. E o jackpot chegou com a luta dos estúdios de Hollywood pela adaptação do seu livro autobiográfico.

Acontece que, por altura da estreia do filme, já a história de Montañez parece ter sido desmontada como uma farsa. Eva Longoria, famosa atriz de “Donas de Casa Desesperadas”, aqui como realizadora estreante, tem tentado fugir ao tema.

Quando encurralada, numa entrevista ao “The New York Times”, Longoria esquivou-se. “A história nunca nos afetou”, diz sobre o artigo de 2021 que desmente a versão de Montañez. “Nunca pretendemos contar a história do Cheeto. Estamos a contar a história de Richard Montañez, estamos a contar a sua verdade.”

Foi já no início dos anos 2000 que o imigrante mexicano terá começado a divulgar a história de como o snack vermelho teve a sua mão, recorda o “Los Angeles Times”. Montañez tornou-se famoso e fez carreira graças à inacreditável história improvável de sucesso. Só em 2018 é que a própria empresa decidiu tirar a limpo toda a narrativa. Três anos depois, os jornalistas puseram tudo preto no branco.

Segundo a reportagem, as recordações de Montañez estavam recheada de imprecisões e falsidades. “Nenhum dos nossos registos mostram que Richard esteve envolvido, em qualquer momento, nos testes de mercado do produto”, revelou a Frito-Lay. “Isso não significa que não celebremos o Richard, mas os factos não sustentam a lenda urbana.”

“O filme é a história de Richard Montañez, contada através do seu ponto de vista. As suas contribuições para a Frito-Lay são elencadas ao longo do filme, sobretudo a sua visão e ideias sobre como servir melhor os consumidores hispânicos. Um legado que a PepsiCo [dona da Frito-Lay] mantém vivo até hoje. Estamos gratos pela sua ajuda e esperamos que gostem do filme”, revelou a empresa num cauteloso comunicado.

A verdade é que a reportagem do “Los Angeles Times” é bem menos politicamente correta. Montañez esteve envolvido na investigação interna da empresa, mas abandonou a meio. A empresa entrevistou dezenas de funcionários e chegou à conclusão de que o mexicano estaria a mentir. “Não podemos atribuir-lhe qualquer crédito na criação dos Flamin’ Hot Cheetos ou de qualquer outro dos produtos Flamin’ Hot.”

Montañez veio a público defender-se. “Não sei o que estava a fazer a empresa noutras fábricas, noutras divisões — não faço ideia do que estavam a criar. Nem sequer vou tentar argumentar, porque não sei. Tudo o que posso dizer é aquili que eu fiz. A minha história. Aquilo que fiz na minha cozinha”, explicou à “Variety”.

No filme (e no livro), Montañez alega que foi em sua casa, com a ajuda da família, que testou os condimentos picantes que seriam depois usados para criar a receita dos Flamin’ Hot Cheetos. Entregou depois a receita aos executivos, que eventualmente o “empurraram” da fase de testes do produto no mercado, isto porque, garante, “não era um supervisor”. “Eu não era ninguém”, afirma, sobre a acusação feita pela Frito-Lay de que não tinham qualquer documentação sobre o seu trabalho na empresa.

Segundo Montañez, uma figura dentro da empresa foi crucial para o desenrolar da sua narrativa, Al Carey, executivo que trabalho na Frito-Lay durante quatro décadas e que chegou a ser CEO da divisão norte-americana da companhia em 2006. E Carey, segundo o “Los Angeles Times”, é o único ex-funcionário que publicamente tem confirmado a versão de Montañez.

Segundo Carey, Richard pode “não ter sido quem inventou o ingrediente”, mas “os tipos na fábrica” foram capazes de “inventar a energia que está por detrás do produto, do seu posicionamento e da razão pela qual se tornou tão bem sucedido”. “Sem o Richard, o produto não estaria no mercado.”

Também a PepsiCo, já depois da reportagem do “Los Angeles Times”, decidiu amenizar as suas conclusões, numa tentativa de refrear a má reação da comunidade latina à sua investigação que colocara Montañez de fora da lista dos inventores do snack. A empresa aplaudiu o trabalho do mexicano e sublinhou que está a sua intervenção “está longe de ser uma lenda urbana”. “Não temos por que duvidar das histórias que ele contou.”

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