Televisão
“’Quem Quer Casar com o meu Filho?’ é machista e o lugar da mulher é desvalorizado”
Duas especialistas ouvidas pela NiT analisam os perigos do novo reality show da TVI.
Eis os filhos e mães do novo programa da TVI.
Estreou apenas há uma semana, no domingo de 10 de março, mas deu logo polémica. O novo programa da TVI, “Quem Quer Casar com o meu Filho?”, recebeu centenas de críticas nas redes sociais e várias queixas na ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) — assim como o seu concorrente da SIC, “Quem Quer Namorar com o Agricultor?”.
Neste formato, que é uma adaptação de um programa internacional, vários homens estão à procura do amor da sua vida. Eles são ajudados pelas mães no processo de escolha que terão de fazer entre as várias concorrentes — que são, no fundo, pretendentes ao lugar de mulher num futuro e potencial casamento.
No episódio de estreia as duplas de filhos e mães conduziram pequenas entrevistas com várias candidatas. No final, cada homem ficou com cinco concorrentes — a ideia é que, ao longo das semanas, se conheçam melhor, haja vários desafios (e, claro, intrigas) e sobre apenas uma pretendente, a mulher que vai ficar com cada homem.
“Quem Quer Casar com o meu Filho?” tem sido acusado de machismo e de colocar a mulher num papel submisso. A NiT falou com a psicoterapeuta de casais e famílias, Joana Alves Ferreira, d’O Canto da Psicologia, que concorda com essas críticas.
“Poderia dizer que considero um verdadeiro retrocesso, mas não sei se a existência deste tipo de formato e, sobretudo, as audiências que habitualmente conseguem, não será indicador de uma questão mais preocupante, na medida em que parece expressar uma sociedade onde ainda prevalece uma mentalidade profundamente machista e onde o lugar da mulher é desvalorizado. Associei a esta questão as notícias que temos vindo a receber nos últimos tempos, nomeadamente o número de vítimas mortais de violência doméstica só nestes primeiros meses do ano — não será este programa a expressão de uma questão social preocupante?”
Joana Alves Ferreira diz que a dinâmica no programa entre filho, mãe e a potencial nora é “desajustada, fora do lugar e confusa”. E também falou sobre o papel dos filhos neste formato. “Parece-me fundamental questionar a posição em que estes homens se colocam, num registo de dependência relativamente à figura materna, numa posição infantil e de total falta de autonomia.”
A psicoterapeuta explica que uma relação construída com base numa escolha que é feita parcialmente por uma mãe “desvirtua o sentido do que é a construção de um vínculo de intimidade”. E explica que o facto de tudo estar a ser gravado torna complicada a possibilidade de uma relação verdadeira se formar.
“Porque a este espaço de intimidade se sobrepõe toda a exposição a que um programa televisivo obriga, condicionando o que é construir a relação com o outro, no sentido da descoberta, da partilha, num clima que se espera que seja seguro, íntimo… e a dois. Por outro lado, parece-me que uma relação que é constituída a partir do pressuposto de que há um elemento que é escolhido por outro (e em detrimento de outros), coloca os parceiros num registo assimétrico, que não é expectável na construção de um vínculo saudável, no qual a conjugalidade possa ser dividida numa base de complementaridade, reciprocidade e igualdade.”
Pode haver efeitos nocivos para a estabilidade emocional destas concorrentes, apesar de Joana Alves Ferreira defender que as pessoas sabiam ao que iam quando se inscreveram no programa. “Quando se escolhe entrar num registo como este, quebram-se alguns limites e aceitam-se, à partida, as consequências do lugar em que se posicionam. Talvez por isso este registo possa interessar a algumas pessoas e para outras não fazer sentido algum. Se, quem participa, está mais ou menos preparado para o impacto que essa exposição acarreta, poderá ser uma questão a pensar, mas isso dependerá sempre de questões intrínsecas a cada participante, à forma como encara esse lugar, às expectativas e motivações que a faz participar neste registo.”
A psicoterapeuta também conclui que estas mulheres estão numa posição submissa. “O problema é o lugar em que essas mulheres se colocam, na medida em que o convite que está implícito é exatamente a que se sujeitem a uma posição submissa, de escrutínio e de avaliação por terceiros, assumindo uma condição objetificada e profundamente desvalorizada do que é a representação do ser mulher”, explica.
Estas concorrentes deveriam ter acompanhamento psicológico ao longo do formato, tendo em conta os desafios que atravessam? “Ter acompanhamento psicológico é sempre uma decisão muito pessoal e, de resto, essa é uma condição necessária para que um processo terapêutico possa ocorrer. Enquanto imposição, não me fará sentido em nenhuma circunstância.”
A NiT falou ainda com a diretora clínica da Learn2be (uma clínica de psicologia e coaching), Vera Ferreira, que também critica ferozmente “Quem Quer Casar com o meu Filho?”. “Este tipo de programas neste registo e com a única preocupação nos números de audiências obtidas deixa-me sempre com a sensação de pouco respeito pela humanidade, pelas emoções das pessoas e pelos processos individuais.”
Vera Ferreira diz que é um formato que pode “criar ilusões fantasiosas acerca das relações de casal nas participantes e possivelmente em alguns dos telespectadores”. “Retira-se deste formato todo o encanto inicial dos encontros entre seres humanos e transmite-se a ideia de que qualquer pessoa pode escolher um bom ‘parceiro’ seja para quem for.”
Afinal, ao contrário de “Casados à Primeira Vista” — o programa da SIC que começou a tendência na televisão portuguesa de formatos sobre relações amorosas (e que vai ter uma segunda temporada) —, aqui não há quaisquer especialistas da área da psicologia a tentar estabelecer matches entre concorrentes para garantir algum grau de compatibilidade. Ou para ajudar quando os problemas surgirem.
Ao contrário de Joana Alves Ferreira, a diretora clínica da Learn2be diz que estas mulheres não estão num papel submisso por terem poder de escolha. “Não posso deixar de referir que ver muitas mulheres de volta de um homem me faz lembrar culturas orientais onde ainda nos nossos dias esse registo é bem presente. A diferença é que aqui, elas escolhem estar ali e não se limitam a ter que obedecer à escolha do homem. Não acho que estas mulheres tenham uma postura submissa.”
Vera Ferreira também recorda que todos nós conhecemos casais felizes que se conheceram em circunstâncias mais invulgares — e que este pode ser um desses casos. “A saúde ou doença de um casal não se define pela forma como o relacionamento se inicia mas sim pelo modo como a relação é encarada, trabalhada, desenvolvida. Toda e qualquer relação precisa de ‘alimento’ diário independentemente da forma como começou.”
E é plausível que uma relação saudável possa desenvolver-se num ambiente televisivo e competitivo como este? “Plausível é, até porque, como podemos constatar, temos um programa como este em horário nobre num dos principais canais a nível nacional. A existência de um programa como este parece ser cada vez mais uma tendência dos nossos dias, embora isso me preocupe particularmente porque retira das relações a naturalidade, beleza e ocasionalidade dos encontros e desencontros da nossa vida. Passa-se a ter hora e dia marcado para conhecer a pessoa A hoje, a pessoa B amanhã e depois faz-se uma espécie de pim-pan-pum.”
Apesar de tudo, Vera Ferreira pensa que as concorrentes não necessitam de acompanhamento psicológico no decorrer do programa — mas que, numa fase posterior, isso poderá ser necessário. “Não se denota sintomas que justifiquem o acompanhamento psicológico durante o programa. Agora, sabemos que este tipo de escolhas na vida de uma pessoa possivelmente tem por base experiências passadas falhadas e eventualmente daí possa advir a necessidade de acompanhamentos individuais, mas isso é extra programa. Depois de terminado o programa, poderá haver concorrentes que precisem de ajuda para lidar com sintomas e emoções de rejeição/abandono/tristeza profunda e desamparo social.”