Televisão

“Rabo de Peixe” é um pequeno passo para a Netflix — e um passo gigante para Portugal

A série estreou a 26 de maio e é uma das mais ambiciosas produções televisivas nacionais. Está longe de ser uma obra-prima, mas também não desiludiu.
Os quatro protagonistas são casos sérios.
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Em 2001, numa era em que a Internet ainda não permitia grandes registos daquilo que se passava em Portugal, algo de verdadeiramente bizarro aconteceu nos Açores. A chegada à costa de centenas de quilos de cocaína pura provocaram uma catástrofe com epicentro na pequena freguesia de Rabo de Peixe. E tal como os sismos a que os locais estão bem habituados, o impacto do evento foi-se diluindo à medida que a distância aumentava.

A desgraça que se abateu sobre a população e que dizimou muitas famílias estava bem presente na mente dos açorianos. No continente, alguns recordavam-se vagamente das reportagens e dos relatos que chegaram pelas televisões. Hoje, duas décadas depois, a história ressurge pela mão, claro está, de um açoriano, Augusto Fraga.

Era uma história que implorava por uma adaptação ao cinema e à televisão. E a ideia acabaria por convencer a Netflix a apostar na segunda produção original feita em Portugal. Minto. Nos Açores, terra que é, de resto, o elemento diferenciador de “Rabo de Peixe”, a série do momento — e que, por breves instantes, foi também a série do momento num fugaz momento raro de destaque nacional nos tops globais da gigante do streaming.

O incidente de 2001 e o singular cenário natural (e sociológico) dos Açores são matéria-prima que vale ouro. E o melhor elogio que se pode fazer a “Rabo de Peixe” é que soube tirar o máximo partido dessa riqueza. A fotografia delicada enaltece a beleza natural da região e a isso não será alheio os meios aos quais tem acesso uma produção da Netflix, caso raro na indústria nacional.

O elenco de protagonistas com muitas caras frescas é uma ótima surpresa. E ainda bem, porque é dos mais experientes que chegam talvez as prestações menos conseguidas, do excessivamente espalhafatoso e caricaturesco Arruda, de Albano Jerónimo, ao Uncle Joe de Pepê Rapazote, aparentemente agrilhoado à “voz de trailer”. A quase total ausência de pronúncia açoriana — compensada com a ocasional expressão local — é um tema de debate nacional que pouco importa às audiências internacionais. E foi também para elas que “Rabo de Peixe” foi desenhada.

É nessa execução que talvez se encontre o porquê de “Rabo de Peixe” singrar onde outras até aqui não o conseguiram, numa adoção de um ritmo mais acelerado que não esbarre com o crescente défice de atenção; de um impacto visual mais colorido e imediato; de uma narrativa direta e facilmente compreensível. Se é verdade que o impulso orgânico da Netflix dá um forte empurrão às produções originais, a verdade é que “Rabo de Peixe” fez tudo by the book, para o bem e para o mal.

Lá fora, ninguém quer saber do sotaque açoriano. Esse é um debate para os portugueses, tal como o é o debate sobre a abordagem ao incidente que fez centenas de vítimas da droga e da toxicodependência. Como afirmava um dos argumentistas, trata-se de entretenimento — essa análise deve ser deixada, e bem, para os documentários. Coisa que, declaradamente, “Rabo de Peixe” não é.

E se se trata de entretenimento, é precisamente isso que traz aos portugueses e sobretudo aos telespectadores estrangeiros. Ainda que o possa fazer à custa de alguma formatação globalizante. Talvez seja esse o passo que falta dar: deixar para trás alguns preconceitos, espelhados nos inúmeros debates sobre sotaques, representatividade, análise social.

Com isso, não se quer dizer que “Rabo de Peixe” seja perfeita. Não é, nem sequer está próxima de ser uma grande série. Não nos importaríamos de mergulhar mais a fundo nesta ou naquela personagem, de adensarmos os propósitos, de limarmos aqui e ali os twists e os contornos desta história louca vivida na pacatez açoriana. Feitas as contas e com mais ou menos críticas, “Rabo de Peixe” foi aonde nunca nenhuma série portuguesa foi. E só isso merece um valente aplauso.

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