Televisão

Romeu Bairos: o músico que se tornou uma das estrelas de “Rabo de Peixe”

É açoriano de gema e interpreta Sandro G, o rapper da vila que o ajudou a começar a carreira na vida real.
Bairos nasceu nas Furnas e tem 30 anos

“Não se passa nada nesta terra”, tornou-se numa das frases emblemáticas do arranque de “Rabo de Peixe”, a produção nacional para a Netflix que se tornou mesmo na décima série mais vista da plataforma em todo o mundo. Aquela frase específica diz muito a Romeu Bairos, açoriano das Furnas, que trocou a ilha por Lisboa, à procura do sucesso no mundo da música.

Há dez anos tocava e cantava na rua, de guitarra na mão, a sonhar com uma viagem para o continente. Num desses dias, foi abordado por um açoriano, emigrado nos Estados Unidos. A cara parecia familiar. “Era o Sandro G. Tinha vindo da América, falou comigo e ficámos amigos”, recorda à NiT. Quando lhe perguntou porque é que estava a tocar na rua, partilhou com ele o sonho: queria juntar dinheiro para a passagem de avião para Lisboa. Sandro pegou na carteira e pagou-lhe o bilhete.

“Eu era fã dele. Ele ficou meu fã. Anos antes tinha-o visto pela primeira vez na televisão, no programa do Herman. Pensei: se este gajo cá da terra consegue, nós também conseguimos.”

Hoje com 30 anos, Romeu está a concretizar o sonho, graças à passagem do agora amigo Sandro G. Participou no “The Voice” em 2015, no Festival da Canção em 2021, está a preparar um disco de folclore micaelense e, num golpe de ironia, conquistou o seu primeiro papel numa série de televisão, “Rabo de Peixe”, precisamente a encarnar o papel do ídolo de criança, Sandro G, o famoso rapper de Rabo de Peixe. E Romeu tem outro trunfo: é intérprete de vários temas da banda-sonora da série da Netflix.

Para os mais esquecidos (e os mais novos), Sandro G foi um sucesso no início do século, pouco tempo depois dos acontecimentos que inspiram a série “Rabo de Peixe”. Emigrou novo para os Estados Unidos, tal como muitos outros açorianos. Apaixonou-se pelo rap e lançou um tema que ficou para a história da vila piscatória em particular e dos Açores em geral: “Eu Não Vou Chorar”.

É com uma “versão dramática” e acústica deste hino de Rabo de Peixe, interpretada por Bairos, que arranca o quinto episódio da série. A sua voz surge aqui e acolá, mas o ponto alto é o momento que tem em frente às câmaras, algo que aconteceu por puro acaso.

O açoriano começou por ser um intermediário. “Se fosse um negócio de droga, eu era o pequeno dealer”, explica, com ironia. A produção queria chegar até Sandro G, mas as tentativas saíram frustradas. O rapper, “desconfiado por natureza”, recusou qualquer abordagem.

Foi então que o telefone tocou, com o pedido para que Romeu pudesse interceder e fazer a ponte. Foi a única forma de ele os ouvir. Por essa altura, percebia-se que seria um projeto grande. “Já se falava na Netflix, mas ainda nada estava oficializado.”

Ocupado com o seu tema para o Festival da Canção de 2021, não fez caso da produção. Meses mais tarde, um colega açoriano convidava-o para um jantar que iria reunir os locais que participavam na série. “Eu disse que não era ator, mas ok. Disse que se era para convidar, ia pelo menos apanhar uma piela”, recorda. Nesse jantar estava Miguel Damião, Zeca Medeiros, David Medeiros, Luís Filipe Borges e o criador de “Rabo de Peixe”, Augusto Fraga.

“Pouco tempo depois chamaram-me para a festa do Pedro Medeiros, açoriano que fez a capa do José Condessa para a ‘Men’s Alheta’. Pediu-me para ir lá e já sei que estão sempre à espera que eu toque qualquer coisa. É maneira de terem música de borla (risos). Na brincadeira, comecei a imitar o Sandro G e a cantar a ‘Eu Não Vou Chorar’.” Na festa estava precisamente Augusto Fraga, que ficou “com ar sério” a olhar para Bairos.

Duas semanas depois, o telefone voltava a tocar. Era o diretor de casting de “Rabo de Peixe” a dizer que tinham um papel para si na série. “Eu conheço o Sandro há dez anos, consigo imitá-lo, nas expressões, no sotaque. Sou um macaquinho de imitação e eles quiseram que eu entrasse na série como Sandro G.”

Naturalmente, a produção contactou primeiro o músico, que deu a sua bênção. “Ele disse que seria uma honra ser eu a fazê-lo. Pelo contrário, tinha muita preocupação se fosse um ator qualquer. ‘Quem é esse gajo? Vai fazer de mim um palhaço?’ Quando soube que era eu, ficou descansado.”
Como açoriano, Romeu Bairos olha para a série com um sentimento agridoce. Reconhece nela “o adn e uma espinha dorsal açoriana” e o esforço em “tentar ao máximo usar pessoas da região”.

“Sei que é difícil porque é uma região pequena, não há expressão artística suficiente para fazer um casting só com atores açorianos. Ainda assim, acho que talvez pudesse ter havido mais representatividade.”

Bairos, à direita, como Sandro G na série da Netflix

Viveu a estreia da série na sua terra, entre açorianos, que foi ouvindo. “Alguns sentem-se incomodados com a questão da [falta de] pronúncia açoriana, apesar de se notar a vibe dos Açores. É que a pronúncia é o BI das pessoas”. Não são muitos os atores no elenco com raízes micaelenses e, naturalmente, a pronúncia açoriana é muito menos vincada do que seria de esperar.

Faz-se também o retrato da vila de Rabo de Peixe, das suas gentes, da sua forma de viver. “Agora está na moda e isso é importante. Quem for lá vai perceber que aquelas pessoas foram desprezadas durante muito tempo por quem tem poder. Espero que a série ajude a mudar a forma como se olha para Rabo de Peixe”, explica.

“As pessoas costumam perguntar-me se Rabo de Peixe é perigoso. Não é. As pessoas tratam-te bem, acolhem-te, dão-te o pouco que têm. Mas são sempre desconfiadas, porque sempre foram enganadas, usadas, prometiam-lhes coisas que depois nunca se cumpriam. Talvez por isso sejam um bocadinho agressivas, mas a malta é boa.”

O realismo total seria sempre difícil de alcançar. “Ninguém quer saber da desgraça de um feio pobre”, diz, enquanto traça uma comparação com o protagonista, Eduardo, interpretado por José Condessa, e Sílvia (Helena Caldeira). “Aquilo é tudo muito lindo, o protagonista vive em casa com o pai. A miúda de cabelo rosa a ouvir Blur. Retrata mais a classe média de São Miguel do que Rabo de Peixe. Depois ouvem-se muitos foda-se e caralho. A série podia chamar-se ‘Matosinhos’, porque lá não se fala assim. Mas lá está, são personagens de um imaginário. É ficção.”

Certo é que a ficção apoia-se numa história bem verdadeira e que ainda hoje marca os locais. Um drama indissociável de “Rabo de Peixe”, por mais que se tenha transformado a narrativa num thriller vendável para a Netflix e o seu público. Não há micaelense que não tenha sofrido com as ramificações do drama da droga. Foi isso mesmo que Bairos chegou a alertar numa reunião de produção.

“Quando entrei no projeto tivemos uma reunião, estava tudo sorridente, contente. Eu disse-lhes que havia motivos para isso, mas que estávamos a falar de uma história que destruiu muitas vidas. Na minha família houve muita gente que se desgraçou na droga”, conta. Na série, a faceta mais pesada e negra da história é abordada num par de cenas. Fala-se das mortes, sobretudo quando a inspetora visita a morgue.

“A mensagem devia ter passado mais. Nunca é demais alertar”, nota. “Se houve uma exploração [do drama]? Claro que houve. Mas era importante que depois de tudo isto, se mudassem algumas vidas. Se depois de tudo isto, não mudarmos a forma como olhamos para Rabo de Peixe, a série fracassou.”

Apesar de tudo, Romeu Bairos também é um açoriano com papel na série e reconhece a sua própria responsabilidade. “Ao fim do dia, também ganhei o meu dinheiro. Mas gostava e tenho vontade de mudar alguma coisa na vida daqueles jovens, no combate às drogas.”

“Por mais dinheiro que se faça, por mais notoriedade, se não houver uma intervenção, se não se mudar a vida de uma só pessoa que seja de Rabo de Peixe, tudo isto fracassou. Usa-se o nome, conta-se a história, e apesar de a série estar muito boa, se nada acontecer, é um fracasso. Para isso, não voltem. Não vale a pena.”

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