À 16.ª temporada, lançada em 2019, “Anatomia de Grey” batia a longevidade da aparentemente imbatível “E.R”. Tornava-se assim rainha do género: o drama passado nos corredores dos hospitais. Três anos mais tarde, eis que a série continua viva e resiliente, a caminhar para a 19.ª temporada. E tudo começou com uma obsessão.
“Andava obcecada com canais sobre cirurgias”, explicava Shonda Rhimes, a criadora, em 2006. “Fiz um episódio-piloto para a ABC sobre jornalistas que cobriam a guerra. Adorava-o, mas quando fui ao Iraque, percebi que o episódio era de mau gosto, até porque as personagens se estavam a divertir.”
Chocou-a o facto de retratar daquela forma um cenário no qual “morriam soldados”. A história ficou na gaveta, mas Rhimes nem por isso. Voltou a preparar um novo piloto e, desta vez, tudo haveria de encaixar.
“Voltando a essa obsessão por cirurgias. Estava sempre a falar com as minhas irmãs sobre as operações que tínhamos visto no Discovery Channel. E havia algo de fascinante nesse mundo médico, vês coisas que nunca imaginarias ver”, conta. “E depois gosto do facto de que os médicos falam sobre a sua vida [com os colegas] enquanto abrem uma pessoa. Quando me pediram um piloto novo, pareceu-me natural ser sobre isso.”
Passados 17 anos, a produtora norte-americana deu aos fãs mais de 400 episódios — 402, para sermos mais precisos — e pelo caminho tornou-se na showrunner mais poderosa e bem paga da televisão. Por cá, os apaixonados por Meredith Grey podem contar com a chegada dos novos episódios esta quarta-feira, 19 de outubro, a partir das 22h20, no canal Fox Life.
Aos 52 anos, Rhimes é uma máquina de debitar êxitos, mesmo em modo de produção massiva. Chegou a gravar 70 episódios por ano e desenvolveu alguns dos maiores êxitos da televisão nos últimos anos. Além do poder de fazer literalmente o que quiser, é também dona de uma fortuna avaliada em mais de 140 milhões de euros. Estima-se que, por ano, acumule um valor perto dos 15 milhões de euros, o que faz dela a showrunner mais bem paga da indústria.
Filha de uma professora universitária e de um administrador, formou-se em cinema, escrita de argumentos e seguiu o caminho que muitos seguem em Hollywood: começar por baixo. Fez um pouco de tudo, foi secretária, conselheira num centro de emprego, até que uma curta-metragem a ajudou a dar nas vistas, muito graças ao elenco com Jada Pinkett-Smith e Jeffrey Wright. Acabaria por ser a autora do guião de “Crossroads”, o primeiro filme de Britney Spears.
Sem grandes êxitos no bolso, ganhou o seu espaço nas salas criativas e acabaria por saltar para a ABC, para quem começou a produzir pilotos. Quando o canal decidiu arrumar de vez com “Boston Legal”, os administradores entraram na arena das séries médicas. Foi quando o piloto escrito por Rhimes caiu em cima da mesa.
“As séries sobre médicos são difíceis e tornou-se complicado perceber como é que poderíamos ter uma abordagem diferente”, revelou Francie Calfo, então vice-presidente de entretenimento do canal. “Quando todos estavam a acelerar o ritmo, ela encontrou uma forma de desacelerar a história para nos dar a conhecer melhor as personagens.”
Ao fim de 19 temporadas, muitas das personagens morreram, outras permanecem no ecrã. E Rhimes continua a ter mão na série, apesar de, em 2006, ter confessado ter uma boa ideia de como é que tudo iria acabar. “Sei quais são os últimos momentos de cada personagem”, revelou.
Para Rhimes, o primeiro grande êxito é o seu grande feito. “Diria que aprendi tudo com a série. Nunca tinha trabalhado na televisão, foi o meu primeiro trabalho. Aprendi a dirigir uma série de televisão, tudo o que sei sobre o trabalho”, revelava ao “El País”. “Impressiona-me o facto de ainda estar no ar, de ainda ser uma série de topo no canal e de os fãs ainda responderem tão bem, a par de uma nova geração que está a descobrir a história.”
Se a história começou nos corredores do Seattle Grace Hospital, certamente não terminou por aí. Acabaria por ramificar a temática e criar “Private Practice”, o spin-off de “Anatomia de Grey” que esteve no ar durante seis anos. Em 2012, voltou a surpreender com novo êxito, “Scandal”, que conta a história da dona de uma empresa de gestão de crises, que ajuda os seus clientes a sobreviver aos mais escabrosos escândalos.Foram seis anos no ar, num total de sete temporadas e conquista de dois Emmys.
Ainda “Scandal não tinha terminado” e Rhimes já saltava para outra história de sucesso. Em 2014, lançou “Como Defender Um Assassino”, que acompanha um grupo de estudantes de Direito que se vêm embrulhados num complexo caso de homicídio. Resultado? Mais seis anos no ar, num total de 90 episódios — e mais um Emmy para a coleção.
Shonda Rhimes não era apenas sinónimo de um íman de audiências. Era uma identidade muito própria que se revelava transversal às séries e às suas histórias. Criou, então, uma casa para todas estas criações, a Shondaland, a empresa de produção que gere com mão de ferro e um toque de Midas. Em 2017, todo o mundo sabia que deixar nas suas mãos uma série, era ter uma probabilidade muito alta de atrair audiências — e de fazer dinheiro.
No seu auge, a Netflix decidiu então deitar a mão a Rhimes. A plataforma, que já tinha os direitos de “Anatomia de Grey” e de “Scandal”, pelo menos nos Estados Unidos, decidiu assinar um contrato de exclusividade com a produtora. O valor nunca foi divulgado, mas estima-se que tenha rondado os 100 milhões de euros.
Sobre a mudança de meio, Rhimes confessou que no streaming teria mais liberdade. “Há um horizonte bem claro para aquilo que eu quero. E há um enorme contraste entre trabalhar aqui e na ABC, onde há inevitavelmente mais restrições e fórmulas para o tipo de programas que podemos fazer.”
Prego a fundo, Rhimes pôs se ao trabalho e cumpriu tudo aquilo que era esperado de si — e muito mais. Em 2020, esperava-se a estreia aguardada da primeira produção exclusiva para a Netflix. “Bridgerton” era o seu nome.
Assim que estreou, tornou-se rapidamente na maior estreia de sempre da plataforma — apenas ultrapassada, no final do ano, pelo fenómeno “Squid Game”. Quase dois anos depois, continua a ser a sexta mais vista de sempre, com 625 milhões de horas de visualização. À sua frente? A segunda temporada da série, com sensivelmente 653 milhões de horas.
Rhimes, ainda assim, ficou surpreendida com o sucesso, apesar do seu historial. “O que é bom na Netflix é que consigo contar uma história fechada, encerrá-la. Aqui está a temporada. Aqui está um romance completo. Nos canais tradicionais, tens que tentar aguentar esse romance, esticá-lo pelo maior número de temporadas possível e tentar continuar a arranjar motivos para criar novos conflitos”, explicou.
A redução no número de episódios foi também uma evolução na opinião da produtora. “A ideia de poder esquecer o formato de 24 episódios, como fazemos na ‘Anatomia de Grey’, e de poder fazer apenas oito é qualquer coisa de incrível. Mas também me deixou com aquela sensação de ‘já está?’.”
Pelo caminho, Rhimes deixou mais duas marcas na televisão e na Netflix. Lançou “Inventing Anna”, a minissérie de sucesso com Julia Garner, sobre a história verdadeira de Anna Delvey; e no final de 2020, acordou com a Netflix a renovação do contrato de exclusividade, que agora abrange não só séries, mas também longas-metragens, projetos de gaming e conteúdos de realidade virtual — e mais 12 projetos a serem lançados sob a assinatura de Rhimes.
Além de ser uma mulher negra que subiu a pulso e se tornou numa das mais influentes na televisão, na indústria do entretenimento e na sociedade norte-americana — embora frise que não se vê “como uma das mulheres mais poderosas da televisão”, mas sim “como uma das pessoas mais poderosas” —, tem também gerido a sua imagem com pinças. E, nos últimos tempos, a imagem assemelha-se cada vez mais à marca que Opran Winfrey criou.
No site oficial de Shondaland há um pouco de tudo. Lançado em 2017, publica artigos de cultura, moda, bem-estar, sempre com uma forte veia ativista. Rhimes tornou-se, também, símbolo de empoderamento feminino, sobretudo entre a comunidade negra. Tudo começou pelas personagens, sobretudo no elenco de “Anatomia de Grey”.
Apesar de ter já confirmado que “o guião foi escrito sem quaisquer descrição de personagens” e ” sem ideia nenhuma de como deveriam parecer”, a verdade é que a escolha levou a lugares pouco explorados, como a escola de um diretor de hospital negro.
Muitas das suas histórias focam-se precisamente em muitos dos problemas sociais atuais. Chegou, por exemplo, a escrever um episódio de “Como Defender Um Assassino” em torno de uma mulher trans que tentava escapar a um marido abusador — e escolheu precisamente uma atriz trans para o papel.
Para lá de ir normalizando a diversidade dos elencos desde a sua primeira produção, tem sido voz ativa, por exemplo, na defesa dos direitos ao aborto nos Estados Unidos, onde faz parte da direção da Planned Parenthood, uma ONG que luta pelos direitos a cuidados de saúde das mulheres. Um tema ao qual não se esquivou em “Anatomia de Grey”, onde debateu claramente a temática do aborto em mais do que uma ocasião.
“É um facto que a saúde das mulheres está sob fogo e para mim é importante ajudar a combater estas agressões. Apenas quero ajudar e fá-lo-ei de todas as formas que me sejam possíveis”, conclui.