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Sofia Aparício: “Vamos ser levados contra a nossa vontade. Eles podem ser mais ou menos violentos”

A NiT estava a entrevistar a atriz portuguesa no preciso momento em que os passageiros da flotilha foram detidos pelas forças israelitas.

“Está tudo bem? Drone? Olhe, tenho mesmo que ir.” Foi assim, de forma abrupta e com um tom de pânico na voz, que Sofia Aparício terminou uma entrevista com a NiT, pelas 19 horas desta quarta-feira, 1 de outubro. Pouco depois, soube-se que a flotilha em que viajava rumo a Gaza tinha sido detida pelas forças militares de Israel.

A embarcação estava a cerca de 150 quilómetros da Palestina e, segundo o que a modelo e atriz nos contou, deveriam mesmo chegar esta quinta-feira, ao seu destino. Havia esperança a bordo de que isso iria acontecer, como a NiT constatou durante a tarde.

“Eu sei que vamos ser intercetados. Vai ser mais um crime de Israel, portanto. Vamos ser levados contra a nossa vontade. Eles podem ser mais ou menos violentos, mas acho que nada vai fazer-me arrepender de ter vindo”, disse a ativista de 55 anos.

Ao longo das últimas semanas, a flotilha onde segue também a deputada do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, já se viu cercada por navios de guerra e submarinos. Os drones tornaram-se presença quase diária e, garante Sofia Aparício, já houve ataques com explosivos e químicos. “Mas estes contratempos não nos tiraram a determinação.”

A embarcação partiu no início de setembro com dois objetivos: abrir o corredor humanitário e levar ajuda a Gaza. A bordo tinham produtos como fórmula infantil, medicamentos, comida e água — bens que são cada vez mais escassos na Palestina.

“Eu estou do lado certo. Eu quero salvar pessoas. Eu quero que o rufia, o bully, não seja recompensado pelas maldades que faz. Quando me telefonaram a perguntar se eu queria entrar na flotilha, eu acho que demorei um dia a pensar e a meio do dia pus os pesos na balança. Se eu não aceitar, como é que eu me vou sentir? Se eu aceitar sabendo os riscos, como é que eu me vou sentir? E não aceitar seria uma coisa que me pesaria na consciência para o resto da vida”, realçou a atriz.

Quando é que começou aqui esta viagem?
A viagem começou no dia 1 de setembro, quando saímos de Barcelona.

Porque é que decidiu participar nesta missão humanitária?
Porque eu não consigo ficar parada e não fazer nada enquanto um povo está a sofrer limpeza étnica e os nossos governos não fazem absolutamente nada. Eu não conseguia. Tendo-me sido dada esta oportunidade, eu tinha que vir. De qualquer das maneiras, esta missão nem sequer deveria ter necessidade de existir, mas os governos europeus estão a ser cúmplices com o estado de Israel, que há décadas oprime os palestinianos e comete crimes reconhecidos pelo Tribunal Internacional de Justiça e pela ONU, como a ocupação de Gaza e o bloqueio a Gaza. Há vários anos também houve a implementação de colonatos na Cisjordânia, o que é ilegal. Basicamente, não consigo ficar sentada sem fazer nada. Acho que só a nossa humanidade pode salvar a vida deste povo e não podemos esperar que os nossos políticos o façam. Na verdade, ao que parece, o dinheiro de Israel é mais importante do que as vidas das pessoas. Hoje são os palestinianos, mas no futuro podemos ser nós.

Este assunto tem ganho mais dimensão nos últimos anos, mas não é recente.
Isto não começou a 7 de outubro, mas sim em 1948. O grupo terrorista que fez os ataques de 7 de outubro foi criado no final dos anos 80 e foi criado como uma força de resistência à opressão. Muito antes do 7 de outubro, as prisões israelitas estavam cheias de reféns. A verdade é que há dezenas de milhares de reféns em prisões que sofrem tortura, que sofrem violações. Isto que está a acontecer agora é o culminar de décadas e décadas de impunidade por parte dos Estados Unidos e de Israel. Foram décadas de opressão, de certa forma.

Antes de partir nesta missão, fez alguma preparação, a nível físico e psicológico?
Acho que psicologicamente me preparei dentro do possível, porque nunca estive numa situação destas. De qualquer das maneiras nós tivemos treino não violento, treino para a não violência, e isso deixou-me muito tranquila em relação ao que se possa vir a passar aqui. Claro que não sabemos com o que podemos contar do exército israelita, mas o treino de não violência ajudou-me bastante a sentir-me tranquila a vir nesta missão. Claro que tranquila aqui é com muitas aspas, mas é isso.

Pode-me dizer o que é o treino de não violência?
Não, mas posso-lhe dizer que são protocolos de segurança que incluem não fazer absolutamente nada que possa parecer violento para os soldados. Nós sabemos também que os soldados israelitas, muitas vezes, estão sob o efeito de substâncias. E nós somos civis, nós somos todos civis desarmados. Nós sabemos que em termos de força nós nada podemos fazer contra o exército israelita. A nossa maior arma é exatamente essa, é estarmos protegidos pelo direito internacional e sermos uma flotilha não violenta.

A flotilha está onde neste momento?
Estamos quase a chegar a Gaza. Se não nos intercetarem esta noite, amanhã por volta do meio-dia estaremos em Gaza.

Sabe a quantas milhas estão?
Não lhe consigo dizer isso, porque estão sempre a mudar, mas já passámos todas as zonas vermelhas que tínhamos assinaladas. Estamos a um dia de Gaza, é isso.

Ao longo deste mês, quais foram os maiores obstáculos que teve de ultrapassar?
Não consigo apontar especificamente uma, duas, três, quatro coisas. Sofremos bastante. Tivemos batalhas burocráticas que tivemos de resolver. No porto da Tunísia fomos obrigados a parar e os ataques aos nossos barcos também foram muito assustadores. Foram 11 ataques explosivos e três com substâncias químicas. Acho que o dia mais feliz aqui na flotilha foi quando os trabalhadores do porto de Génova disseram que bloqueariam o porto se perdessem contacto connosco. Para mim, isso é quase emocionante, porque eu acredito mesmo que juntos somos mais fortes. E acredito que temos que ser nós, o povo, as pessoas, a parar com as atrocidades que meia dúzia de lunáticos que estão no poder resolve cometer.

É uma missão que quanto mais avança, mais pessoas inspira?
Eu espero que sim. A humanidade tem que acordar. Mais do que entregar a ajuda, nós queremos abrir um corredor humanitário. O bloqueio que Gaza existe há décadas e agora de uma forma mais intensa. É um crime à luz do direito internacional. Quanto mais o tempo passa, mais nos aproximamos de Gaza e mais intensas as coisas ficam, mas estamos decididos a abrir o corredor humanitário até ao sítio em que nos parem. E lembro, é uma intercessão ilegal, uma intercessão em águas internacionais ou em águas palestinianas, porque as águas de Gaza são águas palestinianas, não são águas de Israel. Qualquer intercessão a barcos de civis que transportam ajuda humanitária é crime. E ainda temos esperança de abrir o corredor humanitário.

A Sofia mencionou ataques explosivos e com substâncias químicas. Alguém da equipa ficou ferido?
Houve um ferido muito ligeiro e barcos que ficaram danificados. Houve um que não pôde seguir viagem. Há um veleiro que neste momento está a navegar sem velas, portanto, é como se fosse um barco a motor. Mas estes contratempos não nos tiraram a determinação.

Como é que tem sido o vosso dia a dia? No meio de tanto medo e incerteza, tentam encontrar algo positivo para se distraírem, de certa forma, do que está a acontecer?
No barco temos muito o que fazer, desde a limpeza de convés, a cozinhar, a limpar e arrumar as coisas depois das refeições, limpar casas de banho. Temos imensas tarefas para o barco e isso mantém-nos ocupados. Além disso, toda a gente aqui tem o trabalho político ou mediático para fazer, que é nos nossos próprios países tentarmos mobilizar pessoas. Não sei como é que as coisas estão em Portugal em termos de mobilização, mas nós queremos que o mundo inteiro mantenha os olhos em Gaza e nesta flotilha em segundo lugar, porque nós estamos a fazer isto por Gaza, pelas pessoas da Palestina que estão a ser vítimas de uma limpeza étnica. Para mim, enquanto pessoa, enquanto cidadã comum, ser humano, é quase inacreditável. Eu digo muitas vezes que o mundo é governado por criminosos e que não têm o menor sentido de serviço público, que só pensam em encher os seus próprios bolsos. A humanidade dessas pessoas, não sei se perdeu pelo caminho na ascensão política ou se nunca a tiveram, mas como é que nós podemos estar parados enquanto vemos um genocídio a ser transmitido em direto nas redes sociais? Antes de vir para esta missão já tinha enviado e-mails ao ministro dos negócios estrangeiros. Há coisas que nós podemos fazer. Nós não nos podemos esquecer que o poder começa no povo e acaba no povo. O poder começa e acaba nas pessoas. Temos que usar e temos que fazer ouvir a nossa voz. E temos absolutamente de parar esta matança. Na Cisjordânia e em Gaza. O suposto acordo de paz, que para mim não é um acordo de paz, é um acordo de rendição, é quase uma recompensa para o genocídio que Israel levou a cabo estes anos todos, é inadmissível. Não havia uma única pessoa de uma entidade palestiniana nesse acordo. Continuamos com aquela mentalidade colonialista de achar que tudo é nosso e fazer o que quisermos. Quando os judeus chegaram à Palestina havia lá pessoas, havia lá pessoas com vidas. Eu conheci nesta missão alguns palestinianos cujos pais ou avós foram mortos no Nakba. Foi-lhes roubado tudo: a casa, os terrenos, as áreas de cultivo, tudo. E nós não podemos normalizar estas coisas ou estamos perdidos enquanto sociedade.

Acredita, então, que para muitos políticos, incluindo os portugueses, as vidas humanas não têm valor?
Infelizmente. O nosso ministro dos Negócios Estrangeiros disse, inclusive, que iria reconhecer o Estado da Palestina, mas que tinha que garantir que Israel seria sempre um país amigo. Agora a minha pergunta é: quem é que quer ser amigo do genocidade? Quem é que quer ser amigo de um homem que é procurado internacionalmente, que tem uma mandado de busca até pelo tribunal de justiça? Quem é que quer ser amigo disto? Eu quero é que parem de bombardear Gaza, parem de matar pessoas e que os palestinianos tenham direito às suas terras e à sua autodeterminação e a cultivar a sua comida sem precisar de ajuda humanitária.

Como é a vossa alimentação na flotilha?
Bebemos água que trouxemos e comemos coisas de latas para nos mantermos nutridos. É isso. São latas. Mas são umas latas bem misturadas. Já no barco em que eu estive anteriormente tínhamos quem cozinhasse e aqui também. Um dia é uma lata de feijão, outro dia é uma lata de grão com os molhos. Eu acho que estas pessoas que estão aqui são os melhores chefs do mundo, porque de enlatados conseguem fazer coisas nutritivas e saborosas. Mas quando como, não consigo deixar de pensar nas pessoas em Gaza que estão a morrer à fome. É absolutamente necessário abrir este corredor humanitário. Deviam ser os Estados a fazê-lo. Não devia ser entre os civis como nós, e há de tudo aqui na flotilha. Há desde advogados a médicos, passando por pescadores, agricultores, reformados, atrizes, artistas. 

São pessoas de realidades diferentes, mas que têm um sonho em comum.
Sim, nós temos todos culturas muito diferentes, mas somos unidos por uma causa comum e acho que temos todos o mesmo coração. Um coração que sangra e isso une-nos a todos. Estou neste momento num barco que saiu do museu diretamente para fazer parte da flotilha. É um barco de 1918. Os nossos barcos são, obviamente, barcos antigos e que têm muitos problemas, mas nós vamos arranjando e vamos andando.

Estes mantimentos que mencionou estão na flotilha desde o início da viagem?
Nós abastecemos em Barcelona e quando fomos parados na Tunísia também fizemos uma reposição. Mas o importante é a ajuda humanitária que nós transportamos para matar a fome e para salvar as pessoas que estão em Gaza a morrer à fome.

E que ajuda humanitária é essa que vão levar até Gaza?
Levamos fórmula infantil. Nunca tive um bebé, mas acho que é uma comida muito específica e nutritiva para os bebés que têm mães mal nutridas. Pode ajudá-los a recuperar. Levamos comida, água, medicamentos. E é muitíssimo importante entregar esta ajuda humanitária, mas é ainda mais importante deixar o corredor humanitário aberto, para que outras ONG que já estejam mais ou menos preparadas para vir, vão ajudar também.

Têm acompanhado os posts que são escritos nas redes sociais sobre esta viagem?
Vamos vendo, sim. Eu confesso-lhe que na noite passada nós tivemos dois alertas de segurança, portanto tivemos que executar duas vezes o nosso protocolo de segurança, e vimos à volta do nosso barco vários navios de guerra. Houve até quem tivesse visto um submarino. Mas pronto, quanto às redes sociais nós vamos vendo o que se passa e também o que passa nas notícias.

No momento em que viram barcos à vossa volta, em que é que pensaram?
Eu acho que nós fizemos tantos treinos que estamos preparados e estamos calmos. Tão calmos quanto possível nestas situações. Nós ainda não sabemos se vamos ser interceptados ou o que vão fazer, mas todas as pessoas que estão aqui sabem ao que vinham. Por isso eu acho que os ânimos continuam bastante elevados, assim como a determinação. Nós estamos tão perto de Gaza que a determinação vai aumentando. Também sabemos que se ontem foram duas ameaças de ataque, hoje também pode haver outros e que se podem mesmo concretizar. Mas estamos tranquilos dentro do possível.

A esperança é um dos vossos motores nestes dias mais difíceis?
Eu só posso falar por mim. Os sentimentos das pessoas, principalmente com culturas tão diferentes, acho que variam. Eu agarro-me muito à esperança e agarro-me muito também ao facto de sentir que vou fazer o que é certo. Eu estou do lado certo. Eu quero salvar pessoas. Eu quero que o rufia, o bully, não seja recompensado pelas maldades que faz. Quando me telefonaram a perguntar se eu queria entrar na flotilha, eu acho que demorei um dia a pensar e a meio do dia pus os pesos na balança. Se eu não aceitar, como é que eu me vou sentir? Se eu aceitar sabendo os riscos, como é que eu me vou sentir? E não aceitar seria uma coisa que me pesaria na consciência para o resto da vida. Porque se me dão a oportunidade de fazer uma migalhinha que seja por nós todos, pela humanidade, eu quero contribuir para isso.

Como disse, podem chegar a Gaza amanhã. Já têm ideia de como vai ser a viagem de volta para Portugal?
Já. Isto está tudo planeado. Também sabemos que o porto onde nós queríamos entregar a ajuda está completamente destruído. Portanto, temos um plano B e ainda temos um plano C para entregar a ajuda humanitária. O regresso logo se verá.

O que são estes planos B e C?
Posso contar o A, que era deixar a ajuda humanitária no porto de Gaza. Os outros não posso contar.

Em algum momento se sentiu arrependida por ter participado nesta missão?
Eu odeio andar de barco e enjoo imenso, mas o meu desconforto não é nada comparado com o que se está a passar com as pessoas na Palestina. Eu era uma pessoa que, antes, relativizava os meus problemas. A partir de agora acho que tudo me vai parecer muito pequenino. E não, nem nos dias em que estive mais enjoada pensei em desistir.

Agora que já se passou cerca de um mês, quando pensa nesta viagem e em tudo o que já ultrapassou, do que é que se lembra?
Não lhe consigo responder a essa pergunta porque isto ainda não acabou. Quando for a “ressaca”, não sei o que vou sentir. Acho que vou dormir descansada para o resto da vida porque fiz aquilo em que acreditava e aquilo que eu sei que está certo, mas ainda não consigo fazer essa assunção de como é que eu me vou sentir a seguir. Primeiro acho que vou dormir uma semana. Tenho muitas saudades de casa, muitas saudades da minha cama e das minhas pessoas. Mas o sentimento não lhe sei dizer ainda qual vai ser. Ainda falta.

É tudo muito imprevisível.
É tudo muito imprevisível e é tudo muito intenso. Por isso não sei mesmo, não sei. Tenho a certeza do que estou a fazer, tenho a certeza de que estou do lado certo da história. E não é que eu queira ficar para a história, nada disso. Mas isso aquece-me um bocadinho o coração. Eu sei que vamos ser intercetados. Vai ser mais um crime de Israel, portanto. Vamos ser levados contra a nossa vontade. Eles podem ser mais ou menos violentos, mas acho que nada vai fazer-me arrepender de ter vindo. 

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