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“Tabu”: a adoção por uma família branca e a incrível história de vida de Pedro Filipe

O terceiro episódio desta segunda temporada do programa da SIC centrou-se no racismo.
Pedro Filipe foi um dos quatro participantes.

Depois dos idosos e dos cegos, o terceiro episódio da segunda temporada de “Tabu” centrou-se noutro tema considerado sensível: o racismo. Bruno Nogueira convidou quatro pessoas de diferentes etnias para passarem com ele uma semana. Como sempre, no final, apresentou um espetáculo de stand-up baseado na temática e nas experiências que absorveu do contacto com os participantes. O episódio foi transmitido este sábado, 21 de janeiro, na SIC.

Pedro Filipe foi uma das quatro pessoas que gravaram o episódio em março do ano passado. No programa, acaba por representar a comunidade negra dos PALOP em Portugal — com ele estavam a brasileira Lu, a cigana Susana e a chinesa Xinyi.

Aos 38 anos, Pedro Filipe tem uma agência de comunicação e marketing, além de estar ligado ao ativismo pelos direitos dos afrodescendentes em Portugal. Faz parte do coletivo O Lado Negro da Força e foi precisamente através de outro projeto associativo que chegaram ao seu nome. Depois de participar numa entrevista em que contava a sua história de vida e o que pensava sobre diversos assuntos relacionados com o tema do racismo, foi convidado a participar em “Tabu”. 

Com um sentido de humor e uma grande abertura para brincar com o assunto, Pedro Filipe gostou logo da ideia — até porque já tinha visto alguns episódios da primeira temporada. “É importante abordar o tema desta forma num programa mainstream, de um dos principais canais, porque raramente acontece”, explica à NiT. 

“Com esta visibilidade, é bom que as pessoas possam ouvir, quer da minha boca quer da das outras pessoas que estiveram comigo no programa, na primeira pessoa, as nossas experiências, o que nós achamos de vários assuntos. É importante ter um lugar de fala e que a maior parte da sociedade tenha desta vez um lugar de escuta, ainda que haja aqui uma parte cómica. É importante termos os protagonistas a falar sobre as suas histórias e experiências, é muito raro acontecer na televisão portuguesa”, argumenta.

Também lhe pareceu bem o facto de englobar pessoas de diversas origens e que, por isso, se debatem com problemas diferentes dentro da problemática maior que é o racismo. “O racismo assume múltiplas formas e a produção esteve bem ao tentar abranger vários tipos de experiências — que têm tanto de igual como de diferente entre si, por isso é bom que as pessoas conheçam as várias, ou pelo menos quatro, experiências. Tens a Lu, que é brasileira, a maior comunidade imigrante no País; tens a Susana, que é cigana, e talvez seja a comunidade que mais sofre de discriminação e em que é mais aberta; e tens a Xinyi, que tinha tido uma experiência muito recente por causa do Covid, em que as pessoas associaram o vírus à China. Se calhar há meses ou há anos a Xinyi não teria ali lugar, mas naquele momento fez todo o sentido. Nem eu tinha noção das coisas pelas quais ela teve de passar naqueles dois anos de Covid.”

Pedro Filipe admite que ele próprio aprendeu “imenso” com este processo. “Senti ainda mais a necessidade de haver este tipo de programas e de haver pessoas racializadas e diferentes a contar as suas histórias. Por exemplo, eu não tinha noção do que se tinha passado com pessoas asiáticas que estavam em Portugal durante os tempos do Covid. Isto não foi noticiado. E ouvi ali histórias… E tenho amigos meus, e fui-lhes perguntar, e eles contaram-me mais ou menos as mesmas histórias e percebi que foi uma altura muito complicada. Sobre a comunidade cigana, eu próprio desconhecia muita coisa e aprendi imenso com a Susana. A Lu não tanto só porque tenho muitos amigos brasileiros, sei exatamente os problemas que afetam sobretudo as mulheres brasileiras, os estigmas, ainda por cima ela também é negra, ou seja, acumula aqui uma data de traumas e agressões, mas com as quais infelizmente já estou familiarizado.”

Pedro Filipe recorda que se riu imenso com o segmento de stand-up comedy. “Tenho muita abertura, e acho que tem de haver para se brincar com estas coisas. Também se não tivesse essa abertura, não teria aceite ir ao programa, não é? Já sabíamos ao que íamos. E a produção teve sempre o cuidado de nos perguntar, mais que uma vez, quais é que eram as nossas fronteiras e os nossos limites. Eu sei que as pessoas acham que ‘se eles estão ali dá para gozar com tudo’, mas perguntaram-nos quais eram as nossas fronteiras e respeitaram no caso daqueles que disseram que tinham coisas com as quais não gostavam mesmo que se brincasse.”

Conta que os dias que passaram juntos foram intensos e altamente divertidos. Também foi isso que permitiu que se expusessem mais. “Quando fazes uma entrevista de uma hora com alguém que não conheces nunca és verdadeiramente tu, é mais aquela persona tua, mas quando estás dia e noite com as mesmas pessoas… Não estás no ‘Big Brother’, mas às tantas começas a ignorar as câmaras porque já conheces as caras atrás das câmaras, já são familiares, também estás com a equipa de produção há uma semana, e acho que isso se vai perceber bastante bem no último momento de gravação que é o da fogueira, onde se fazem algumas reflexões… Acho que foi quando abrimos mais a alma e as pessoas comoveram-se um bocado mais. E isso só é possível porque já estávamos num ambiente onde as pessoas se sentem à vontade e sentem ali um espaço de confiança que era impossível numa entrevista normal. Contei muitas coisas que nunca tinha dito publicamente, até porque nunca tinha tido esse à vontade em qualquer outro espaço público.”

Pedro Filipe já gostava do trabalho de Bruno Nogueira, mas ficou com uma ótima impressão depois de conhecer pessoalmente o humorista e partilhar alguns dias com ele. “Foi surpreendentemente afável. Parecia-me mais distante do que é na realidade. E gostei imenso. É um tipo que não tem grande ego, tem zero tiques de vedetismo, e isso notava-se até na relação entre ele e a produção. Era uma equipa mesmo coesa, sem qualquer diferença de tratamento. E isso também passa muito para nós, ele põe-nos muito à vontade. O facto de estares com alguém que não impõe qualquer tipo de distanciamento, podes falar de tudo, a experiência foi muito boa nesse sentido também.” Pedro Filipe conta que manteve até o contacto com as três colegas de episódio.

A história de Pedro Filipe

Pedro tem um contexto bastante particular. Como já contara num texto publicado no “Expresso” em 2021, a polícia recebeu uma chamada misteriosa a 8 de outubro de 1984 de uma mulher que seria possivelmente a sua mãe. Quando os agentes chegaram ao jardim municipal de Cascais, para onde foram chamados, só encontraram uma cesta e um bebé recém-nascido — o pequeno Pedro.

Foi levado para o Hospital de Cascais, onde lhe fizeram uma série de testes para avaliar as suas condições de saúde. Estava tudo bem. Como não havia qualquer informação sobre os pais, foi registado no sistema para adoção. Quatro meses depois — num processo que foi relativamente rápido, tendo em conta a norma — um casal branco, que já tinha feito tratamentos de fertilização mas não conseguia ter filhos, recebia uma chamada para ir buscar um bebé. Só que, segundo a doutora responsável pelo processo, havia um problema. “O bebé é negro”. “E os meus pais responderam-lhe: ‘sim, é negro e qual é o problema?’”, contou Pedro Filipe, nesse texto.

Não tem quaisquer memórias dos primeiros anos de vida, como é natural, mas Pedro Filipe sofreu atos de discriminação desde muito cedo. Assim que a mãe e o pai o adotaram, a tia materna, por exemplo, deixou de falar com a mãe. Só a conheceu anos mais tarde. “Por isso, fui logo batizado com a questão de a diferença ser um problema.”

A mãe é loira de olhos azuis, o pai também não era moreno. Portanto, tornou-se óbvio para todos, na escola ou na rua, que Pedro Filipe era adotado. Isso sempre foi abordado com muita naturalidade na família. “Os meus pais sempre me perguntaram se eu queria procurar a minha mãe biológica mas nunca senti qualquer necessidade de o fazer”.

Pedro Filipe argumenta que o seu contexto específico faz com que tenha necessariamente uma perceção diferente do racismo em Portugal. “Não sou a pessoa racializada mais identificável da vida. O facto de ser negro, mas ter sido adotado por uma família branca e ter uma cultura de raiz que não tinha nada de africano… Não cabia na perceção geral, naquilo que as pessoas identificavam como um negro. Isso deu-me alguma vantagem no tratamento que me era reservado. E é sempre importante frisar isso. Mesmo dentro da racialidade, era um certo privilégio que eu tinha. E até o facto de vir de um ambiente socioeconómico mais elevado e de estar habituado a um meio branco desde nascença deu-me sempre alguma vantagem em lidar com várias situações.”

Acredita que isso fez com que tenha “acordado tarde para a realidade”. “O meu mundo era todo branco e às tantas achava que era uma coisa particularizada em mim. Só quando vou para uma escola pública, no sétimo ano, é que percebo, por exemplo, a diferença entre os meninos do SASE e começo a perceber o padrão… Há coisas que não tinha. Na escola onde andava antes era o único negro, era uma escola privada em Lisboa e por isso não havia pessoas negras à minha volta. Ninguém falava do tema e eu achava que era uma coisa minha, que os meus colegas embirravam comigo, aquela coisa do ‘preto da Guiné, lava a cara com chulé’, mas não tens noção de que isto é uma coisa generalizada, até porque és uma criança. Não percebia que era uma coisa que se passava com todas as pessoas que se pareciam comigo.”

Os pais sempre falaram do assunto com ele e tentaram prepará-lo. Começaram por lhe aconselhar que não ligasse ao que os outros diziam. “Tentavam dar-me as defesas e as armas para combater e lidar com isso. Era não ligar ao que os outros miúdos diziam, como se isso fosse possível… Chegava a casa a dizer que os outros meninos me tinham chamado ‘preto’, e a minha mãe dizia ‘Ah, não, chamaram-te Pedro, tu é que percebeste mal’. Tentaram assim enquanto ainda havia alguma inocência. Mas depois foi mais através de palavras de encorajamento e empoderamento. Enfim, fizeram o que sabiam. Para eles também não era fácil. São duas pessoas brancas criadas num Portugal do antigamente. Só por me terem adotado é que também se aperceberam de muita coisa que acontecia, porque eles também não tinham pessoas negras na sua vida. Nunca tinham pensado sequer nestes fenómenos e como é que eles afetavam quem por eles passava — e de repente estavam a viver isto na primeira pessoa e têm que educar uma criança que está a passar por isto, coisas por que eles nunca pensaram passar. Foi um processo de aprendizagem para todos.”

Pedro Filipe contou várias destas situações durante as gravações de “Tabu”. “A maneira como, depois de crescer, senti racismo na faculdade, no trabalho, nas coisas que me são ditas no dia a dia”, diz, acrescentando que o programa foi bom para refletir sobre tudo isto.

“Há muita auto-reflexão, há muitas coisas sobre as quais já tinha pensado, mas chegas a ‘n’ conclusões a que antes não tinhas chegado. Porque como sabes que vais ser julgado, pensas mais seriamente no que vais dizer [risos]. É um bom processo de maturação de ideias”.

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