Trabalhava já como professor quando foi surpreendido com um comentário de um superior hierárquico que diz nunca mais ter esquecido. “Você tem muita sorte porque mais nenhum professor desta casa aceitaria ter uma bicha a trabalhar para ele”, disse. Hélder Bértolo congelou.
“Não reagi, fiquei sem palavras. Qualquer reação seria validar aquele disparate, mas fiquei magoado, como é óbvio”, conta à NiT enquanto recorda aquele que terá sido um dos momentos em que mais sentiu na pele o preconceito e discriminação por ter uma orientação sexual diferente daquela que é a norma. Sente, contudo, que durante toda a sua vida foi um privilegiado. Sobretudo por ser essa a pior recordação que tem de episódios homofóbicos, quando comparada com “tantas histórias horripilantes”.
Aos 51 anos, Hélder Bértolo é hoje o presidente da Opus Diversidades, nova designação da célebre Opus Gay, a segunda mais antiga associação em Portugal ligada à comunidade LGBTQIA+. Nem sempre o seu ativismo foi tão intenso e evidente.
“O meu ativismo sempre foi discreto. Não estava ligado a quaisquer associações, mas fazia um ativismo de exemplo. Não escondia nada nem ninguém. Sempre assumi tudo”, conta. Durante muitos anos assumiu-se como bissexual, tanto gostava de homens e de mulheres. Hoje, identifica-se como pansexual. “Tenho usado esse termo porque assim fica claro que me posso sentir atraído de forma afetiva e emocional por pessoas não-binárias, homens e mulheres cis, homens e mulheres trans.”
O professor universitário foi também um dos convidados do episódio de “Tabu” que foi para o ar este sábado, 4 de fevereiro, e incidiu sobre o tema da comunidade LGBTQIA+. O convite, contudo, aconteceu há já bastante tempo, ainda antes da emissão da primeira temporada do programa da SIC.
Como representante da Opus Diversidades e também como membro da comunidade, hesitou em dizer que sim. “Tinha algumas reticências relativamente ao que podia ser o tipo de humor do Bruno. Sou claramente a favor da liberdade de expressão, mas há algumas questões que quando se faz humor sobre elas, aumenta-se o estereótipo e, quando isso acontece, aumenta o preconceito. Faz com que as pessoas se voltem a esconder, voltem para o armário. É preciso ter em conta o peso que a palavra tem no perpetuar de alguns estigmas.”
Acabou por espreitar as edições espanholas e australianas do programa, gostou do que viu e recebeu “garantias” por parte da produção. Além da experiência pessoal, sentia que devia estar presente como presidente da associação. E ficou feliz quando, recolhido pela carrinha da produção, no dia de início das gravações, percebeu que já conhecia pessoalmente quase todos os participantes.
Sobre o programa, assume que foi “uma surpresa fantástica”. “Estivemos todos juntos. O Bruno também dormia na casa. Passámos os serões a conversar e isso fez com que se criasse uma união muito grande — e que, no momento de gravar, as conversas fossem simplesmente uma continuação de conversas que tínhamos tido anteriormente.”
A sua faceta mais ativista revelou-se em 2019, quando foi convidado pelo anterior presidente da Opus Diversidades, António Serzedelo, para comandar um programa de rádio sobre o tema, o “Para Lá do Arco Íris”. Acabaria por se tornar num sucesso e, na última corrida às Presidenciais, recebeu todos os candidatos para debaterem ideias e medidas no que concerne aos direitos da comunidade LGBTQIA+.

“Comecei a colaborar com eles e depois surgiu de forma natural a criação de uma lista de candidatura à direção. O António já estava cansado e queríamos aproveitar para fazer algumas alterações, da mudança de imagem, à casa de acolhimento que se tornou mais oficial, ao financiamento para podermos prestar mais serviços à comunidade com outro tipo de entrega”, conta.
Nasceu e cresceu numa Lisboa pós-25 de abril, numa família “extremamente informada” e de “mentalidade aberta”. Passou toda a adolescência a acreditar que era heterossexual, até que uma súbita atração por um homem o fez perceber que nem tudo era como pensava.
Tinha 19 anos, começou uma relação e, para ele, tudo fazia sentido. Tanto que decidiu apresentá-lo aos pais, tal como havia feito com todas as suas namoradas. “Devido aos valores que me foram incutidos, vi isso como algo normal. Senti que não tinha que lhes dizer que era bissexual, como também nunca disse que era heterossexual”, explica. A realidade foi bem diferente da que esperava.
“Durante alguns anos foi complicado. Tive receio de que chegasse a um ponto de não retorno”, confessa. Na sua cabeça, a relutância dos pais não fazia sentido. “Aos 16, cheguei a namorar com uma professora minha de 27 anos e os meus pais acharam fantástico, nunca puseram isso em causa [risos].”
Acabaria por sair de casa, mas, ao fim de três anos, houve uma reconciliação. Não só isso, mas admite que a mãe passou a ser “uma ativista”. “Muitas vezes não é uma questão de preconceito, é mais o receio que têm, porque gostam de nós. Têm medo do que nos pode vir a acontecer. Ela teve muitas vezes esta conversa comigo, questionava se a culpa tinha sido dela, dizia que eu não ia arranjar emprego. É uma necessidade de proteger o ser de quem tanto gostam”, conta.
Curiosamente, nos anos que se seguiram, passou a ser a sua mãe a dar conselhos a quem ponderava ou não assumir a sua orientação à família. “Ela dizia muitas vezes que ‘se o Hélder não tem feito isto, eu continuaria a pensar da mesma forma’.”
Para Hélder, a maior facilidade em aceitar não está propriamente ligada a uma questão geracional, de idade. “Cada caso é um caso, mas a verdade é que conheço muitos casos de pessoas que vivem em pequenas aldeias, em avós que aceitam muito melhor a situação do que os próprios pais que já são da geração de 50 e 60, que poderiam ter uma visão mais aberta e por vezes são mais castradores”, nota, apesar de sublinhar que é sempre necessária alguma pedagogia.
Não é apologista de um coming out sem contemplações. Isso seria bom “no mundo ideal” pelo qual luta, ele, a associação e a comunidade. Um mundo onde, tal como os heterossexuais, ninguém teria que explicar à priori a sua orientação ou identidade de género.
“Ainda há muito preconceito, apesar de as pessoas acharem que não. Ainda há pessoas despedidas, expulsas de casa. Quem se quer assumir deve ponderar tudo isso, a reação dos outros mas também a sua independência.”
Bértolo faz uma pausa, despe a farda de presidente e regressa novamente a um episódio pessoal. “Como eu nunca me escondi, chamavam-me de tudo. Passava na rua e era de maricas para baixo. Nessa altura eu fiz um trabalho de investigação, na tese de mestrado, que me deu uma visibilidade enorme. Comecei a dar entrevistas na rádio, na televisão”, conta sobre o cenário que mudou o paradigma na sua vida.
“Uma questão importante é a da interseccionalidade. Se falarmos de uma mulher comparativamente a um homem, já temos uma camada misógina, machista. Se falarmos de uma pessoa racializada, ainda mais. Se falarmos de uma pessoa trans, ainda mais, mais e mais. Há toda uma série de questões que as pessoas não entendem porque nunca passaram por elas.”
Bértolo falta também da necessidade de haver modelos da comunidade em posições de relevo, de visibilidade, para que o preconceito seja menor, para que os pais deixem de se preocupar se os filhos terão ou não emprego só porque têm determinada orientação sexual. “Foi feito um estudo sobre a erradicação da homofobia e transfobia nos meios de comunicação social e uma das propostas passava pela representatividade. Se as pessoas LGBT só vão à televisão falar sobre questões LGBT, as coisas não mudam. Temos que ter pessoas LGBT que vão à televisão porque são ministras, porque ganharam um Nobel. São modelos importantes para que as pessoas não se sintam uma aberração, para caminharmos para uma normalização.”
Na sua vida, a orientação sexual nunca se revelou um impedimento. Estudou Física Teórica, inspirado pelo “Cosmos” de Carl Sagan, mas a meio arrependeu-se. Decidiu acabar a licenciatura e depois enveredar pela área da saúde. “O que eu queria era investigar o processamento visual em cegos usando os sonhos”, recorda. Fez investigação e é, desde então, professor universitário.
Apesar de um ou outro comentário despropositado, sente-se privilegiado por nunca ter visto o seu trabalho colocado em causa. “Tinha alguns problemas quando estava na Faculdade de Medicina e levava a pessoa que estava comigo, naquela altura um homem, a congressos ou eventos. Diziam-me: ‘Que horror, não tens vergonha?’ Todas as outras pessoas estavam lá acompanhadas. Porque é que eu haveria de ter vergonha?”
Em 2003 quis casar-se com o então companheiro. O casamento entre pessoas do mesmo sexo era ainda ilegal em Portugal e por isso viajaram até ao Canadá para oficializar a relação. Foi a partir daí — e de um convite para escrever um livro — que se deu início ao seu ativismo mais pronunciado.
Em 2006 lança “Os Anjos de Gabriel”, um romance autobiográfico que fala “sobre o amor, o percurso, a paixão por mulheres e homens”. O livro sai mesmo a tempo do acender do debate da legalização do casamento e Bértolo passa a ser chamado para debates.
Agora numa posição de relevo dentro da comunidade LGBTQIA+ — prefere apelidá-la de “população”, precisamente para “marcar a diversidade que existe no seu interior” —, faz a sua luta pelos direitos de forma mais vincada. “O facto de o meu superior hierárquico me ter chamado bicha deu-me a perspetiva de outras pessoas. Mas eu ouvi isso uma vez na vida, outras pessoas ouvem isso regularmente, em casa e no trabalho”, explica, antes de se virar para o “trabalho que é preciso fazer” mesmo dentro da comunidade.
“As pessoas homossexuais, homens gay, normalmente não passaram por tantas dificuldades — apesar de haver histórias horripilantes —, não passam hoje o que passariam aqui há algumas décadas, passaram muito menos do que passaram as mulheres lésbicas; e muito, muito menos pelo que passam as pessoas racializadas LGBT ou pessoas trans. Quando oiço alguma homofobia dentro da comunidade, relativamente a pessoas efeminadas, ou alguma transfobia porque não entendem as as reivindicações, se não for pela empatia, que seja por se lembrarem que foram essas pessoas que lhes permitiram ter os direitos que têm hoje”, explica.
“Foram os gays efeminados, as lésbicas masculinas, as pessoas trans que são apontadas na rua. Foram essas pessoas que deram a cara. O motim de Stonewall de 1969 começou precisamente porque duas mulheres trans racializadas, trabalhadoras do sexo, atiraram a primeira pedra”, diz. “Não podemos falar de direitos a partir do lugar em que nos encontramos, quando esse lugar está muito acima do lugar das outras pessoas. E é isso que falta. Falta empatia.”