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“Tabu”: a terrível jornada de Ahmad para conseguir chegar a Portugal

O novo episódio do programa de Bruno Nogueira foi sobre refugiados. A NiT falou com o sírio que atravessou o Mediterrâneo em busca de uma vida melhor.
Tem 27 anos.

Idosos, cegos, racismo e, agora, refugiados. Foi este o tema do quarto episódio da segunda temporada de “Tabu”, o programa de Bruno Nogueira transmitido este sábado, 28 de janeiro, na SIC. Um dos participantes foi Ahmad Omar, sírio de 27 anos que está em Portugal desde 2016. A produção do formato chegou até ele através da Amnistia Internacional, uma vez que Omar é voluntário nos projetos da organização.

“Foi ótimo. Não sei se fiquei bem ou não, mas gostei”, diz à NiT em inglês, quando lhe perguntamos como foi a experiência de participar no programa, antes de o episódio ter ido para o ar. “Não conhecia o Bruno, porque não sei muitas coisas sobre os media aqui em Portugal, não conheço atores ou cantores, mas sim, é uma grande pessoa.”

Apesar de ser um episódio sobre refugiados, Ahmad Omar nunca recebeu esse estatuto oficial. Tinha 18 anos quando, em 2014, decidiu abandonar sozinho o seu país. Não era o único. Conhecia inúmeras pessoas que deixavam a Síria, rumo à Europa e a outros países, numa altura em que o território entrava cada vez mais num conflito armado de grande escala, opondo o regime governamental às milícias rebeldes e ao auto proclamado Estado Islâmico.

“Queria sair porque, naquela altura, estava mesmo, mesmo mau. Havia imensos problemas a acontecer. A guerra estava no início. E foi lento. Começou com as pessoas a protestarem na rua, um ano depois começaram a matá-las, um ano depois as pessoas começaram a ter armas… Não aconteceu tudo muito rápido, foi um passo de cada vez. Mas em 2014 estava mesmo mau e tomei a decisão. A minha família não aprovou, mas fui convincente [risos] e eles disseram-me ‘OK’”, explica à NiT.

Nos anos anteriores, tinha mudado de escola várias vezes em Damasco, a capital síria, numa tentativa de fugir às zonas da cidade mais afetadas pelos bombardeamentos. Mas os ataques, aparentemente aleatórios, eram constantes. O som das bombas tornou-se normal. “Se não ouvias uma bomba, algo de errado se passava. Nunca parava. Onde quer que fosses havia sempre bombas.”

Ahmad Omar viu edifícios caírem à sua frente e assistiu à sua realidade ruir. Não sabe o que aconteceu a várias pessoas que conhecia e perdeu um primo exatamente da sua idade, que morava noutra cidade. 

“Eu não queria ir para a Europa. Eu só queria sair da Síria. Qualquer outro sítio seria melhor. A Turquia era a melhor opção. Existem boas relações entre os dois países. Não precisas de um visto para ires para lá”, explica, sobre a decisão de se mudar para um dos países vizinhos, que partilha alguma identidade cultural com a sua nação. Só que foi, de algum modo, ao engano.

Ahmad Omar na Grécia.

“Tudo o que eu tinha em mente sobre a Turquia era diferente, na realidade. As pessoas nas redes sociais costumavam dizer que se fosses sírio e fosses para a Turquia conseguias estudar de graça, não tinhas de pagar as propinas da universidade pública. E quando lá cheguei era totalmente diferente. Tinhas de pagar, depois diziam-te que tinhas de falar a língua. As minhas opções eram muito limitadas, porque o meu inglês na altura também não era assim tão bom.”

Ainda para mais, no voo de escala que fez no Líbano, entre a Síria e a Turquia, a sua mala perdeu-se. Tinha lá todos os seus pertences. Só ficou com o passaporte, que trazia consigo no bolso, e algum dinheiro.

“Quando cheguei à Turquia não tinha nada a não ser 600 dólares. Tive de comprar roupas, pagar uma renda, transportes”, explica. Não conhecia ninguém naquele país. Passou três meses muito difíceis em Istambul, a mais europeia das cidades turcas, onde tentou encontrar trabalho. “Mas por causa da língua era difícil.”

Três meses depois, estava prestes a desistir e a voltar para casa. “Não tinha dinheiro. A minha família podia sustentar-me durante alguns meses, mas não podiam continuar a enviar dinheiro. A minha opção foi voltar, mas, depois, quando estava a andar na rua, vi um anúncio numa porta para um emprego no supermercado.”

O dono desse supermercado falava inglês e desejava praticar mais a língua. “Só fiquei com o trabalho por causa disso [risos].” Acabou por ficar mais um ano, onde pôde estabilizar um pouco a sua situação. Conheceu inúmeros turcos e outros sírios que fugiam da guerra rumo à Turquia. Não costumavam ficar durante muito tempo. Istambul era uma paragem intermédia na viagem para a Europa.

Foi descobrindo que muitos usavam redes organizadas ilegais que transportavam refugiados e migrantes para a Europa em barcos pelo Mediterrâneo. Passaram-lhe vários números de telefone. Alguns nunca atenderam, de outros garantiram-lhe que ficavam em contacto mas nunca recebeu qualquer chamada de volta. 

“Até que um dia alguém me enviou o número de alguém, a dizer que era de confiança. Eu não confiava, mas só queria sair. E esse deu-me o número de outra pessoa, que me disse para ir àquele sítio.” Foi um processo com vários intermediários. “Havia muitas pessoas. Mas quem estava à frente? Não faço ideia.”

Foi em Izmir, a cerca de 480 quilómetros de Istambul, que foi então apanhar um barco. Não foi sozinho — com Ahmad foram dois amigos sírios que conhecera entretanto na Turquia. Tudo se passou em fevereiro de 2016, quando tinha 20 anos. Aquilo que era para ser uma viagem curta de meia hora, entre a zona de Izmir e uma ilha grega, acabou por demorar cinco horas. 

Teve de pagar entre 600€ e 700€ para ir naquela viagem que quase se revelou trágica, como tantas outras que aconteceram — e continuam a acontecer — no Mediterrâneo. “Foi muito difícil. Por causa das ondas, que não paravam de nos mandar para trás. Estava a chover e saímos à meia-noite. Chegámos à ilha pelas cinco da manhã. E uma ou duas vezes o motor do barco caiu na água, as pessoas que estavam mais próximas tiveram de pegar nele e colocarem-no de novo.” Era um “barco só de ida”, feito de plástico. “Estava cheio de pessoas, sobrelotado.”

Chegado à Grécia e a território da União Europeia, o primeiro passo estava feito. Mas esperavam-lhe mais tempos difíceis. Naquela ilha, entregaram-lhe um documento que permitia circular pela Grécia mas apenas para chegar à fronteira e sair. Não podia permanecer no país. Comprou um bilhete e foi de barco até Atenas, a capital.

Foi lá que ouviu os rumores de que iam fechar as fronteiras. “Por causa da Alemanha, que supostamente não estava disposta a acolher mais refugiados e migrantes.” Ahmad Omar e os amigos, entre tantos outros que estavam numa jornada idêntica, apanharam autocarros para o norte da Grécia, em direção às fronteiras com a Albânia, Macedónia do Norte e Bulgária.

A polícia mandou parar vários autocarros durante a viagem. Ficaram dias numa estação de autocarro a meio caminho. Eram pessoas em situações de desespero, sem nada, com que as autoridades não estavam a conseguir ligar. O fluxo migratório tinha aumentado significativamente. Acabaram por conseguir seguir até à fronteira — que fechou exatamente no dia em que lá chegaram.

“Estava a chover, passámos lá a noite porque já era meia-noite quando chegámos. Não havia nada, só terras de agricultura. Era muito grande e tudo vazio, nem sequer havia árvores.” Porém, lá perto existia uma estação de comboios, onde também estavam voluntários de algumas associações e organizações não governamentais. Uma dessas pessoas entregou a Ahmad Omar e aos dois amigos uma tenda para que passassem melhor a noite, tendo em conta a chuva, o frio e a falta de cobertura. Acabaram por oferecer a tenda a uma mulher que viajava sozinha com três crianças.

Pelo meio ainda conseguiram ficar com uma tenda partida, que só atenuava ligeiramente o problema, visto que a chuva entrava por baixo e molhava tudo. Estiveram cinco dias nestas condições. Comiam aquilo que as associações lhes davam: uma maçã e uma pequena sandes por dia, além de chá. Eventualmente, ao quinto dia, foi instalado um quiosque pré-fabricado da ONU naquela zona. 

As Nações Unidas, que percebiam que era preciso atuar rapidamente naquela área da Europa, estavam a iniciar um programa de relocalização para migrantes. Ahmad Omar lembra-se de ouvir pessoas que lá estavam a defender que tudo não passava de um engodo, que queriam que os migrantes se candidatassem para irem para países europeus mas que na verdade seriam devolvidos aos territórios de origem. A dúvida instalou-se entre todos os que estavam na fronteira norte da Grécia. “Mas já tinha atravessado o mar, quase tinha morrido, portanto pensei: que se lixe. Não pode ficar pior.”

Foram então encaminhados para outro posto da ONU, instalado numa das cidades do norte da Grécia, mas que não estava colado à fronteira. Tinham de lá estar na manhã seguinte. “Havia pessoas a chegar de táxi à fronteira. Apanhámos um desses táxis e dissemos: ‘Não temos dinheiro, pode levar-nos para aquela cidade?’ Era a cidade mais próxima da fronteira. Só tínhamos uns 50€ ou algo assim.”

Um mês depois de chegar a Lisboa.

Quando lá chegaram, fizeram entrevistas individuais e cada um pôde escolher seis países europeus para se candidatar. Ahmad Omar confessa que selecionou Portugal meio por acidente — o sírio nem sabia que se tratava de um país europeu. “Em história estudei que Portugal tinha descoberto o Brasil e etc., mas nunca tinha visto onde era o país num mapa. Por isso pensei que Portugal era ao lado do Brasil.”

Enquanto esperavam pelas respostas oficiais dos países, os três amigos e tantos outros refugiados e migrantes foram instalados em hotéis de Atenas, numa altura em que quase não havia turistas na cidade — ainda se sentiam os efeitos nefastos da crise económica, que também abalou o turismo no país.

Ligaram-lhe três meses depois, em maio de 2016. Portugal tinha aceitado acolher Ahmad Omar. Apenas teve de fazer alguns testes médicos antes de embarcar num avião. Embora tivesse conseguido o tão desejado objetivo de se legalizar na Europa, o processo continuou a não ser propriamente fácil — ainda hoje não o é.

Chegado a Portugal, ficou dois meses num centro de acolhimento na Quinta das Conchas, em Lisboa. Depois, ao abrigo do programa da ONU, foi instalado num apartamento com um colega de casa. Podiam ali permanecer durante 18 meses. Passados dois meses, Ahmad Omar já tinha arranjado trabalho em Portugal — hoje em dia é analista de qualidade para uma empresa grande que colabora com multinacionais em trabalho remoto.

Aí, debateu-se com o problema da habitação em Lisboa, uma vez que não tinha grandes rendimentos. “Aluguei uma casa, mas não conseguia pagar a renda. Então disse à empresa: se puderem ajudar com alojamento, seria ótimo, para eu poder continuar. A minha vida já foi demasiado fodida. Não quero sofrer mais. Eles tinham um programa em que te ajudavam com o alojamento, pagando parte, reduzindo um pouco o teu salário.”

Desde então já mudou várias vezes de casa e hoje é inquilino de um quarto em Lisboa. Recebe pouco mais do que o salário mínimo. “Não é ótimo, mas também não é mau. É bom.” Frisa, contudo, que Portugal é “ótimo” e que o povo é “acolhedor”. Quando houve comentários menos bons sobre refugiados ou migrantes, também não se rala muito. “As pessoas em geral tendem a dizer que os refugiados estão a vir e a roubar os empregos, mas eu trabalho em árabe, portanto… [risos]”.

A sua família continua a viver em Damasco, numa altura em que a situação está mais calma e estável — ainda que, em termos económicos, esteja a ser um pesadelo morar na Síria. Ahmad Omar conta que o seu país tem atualmente o pior salário do mundo, mas os preços dos alimentos, por exemplo, são idênticos ou até mais altos do que em Portugal. “É muito difícil comprar comida.” Depois de tudo aquilo por que passou, diz que não volta tão cedo para casa. “Consigo ir, mas não sei se consigo voltar.”

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