Era um homem impecavelmente bem vestido, aquele que abordou Jake Adelstein. Falou com ele num ritmo pausado, com o tom que se usa “quando se fala com crianças ou idiotas”. “Apaga a história ou somos nós que te vamos apagar. E talvez também a tua família. Mas eles serão os primeiros, para que aprendas a lição antes de morreres.”
Adelstein sabia perfeitamente do que se tratava. O norte-americano era o único estrangeiro a trabalhar na secção de crime do maior jornal japonês, o Yomiuri Shinbun, e passara os últimos anos a investigar um dos grupos da máfia japonesa, os Yakuza.
A peça estava quase pronta e focava-se na atividade criminosa dos Goto-gumi, comandados por Tadamasa Goto. A mensagem teria, sem dúvida, a sua assinatura. A história bombástica nunca seria impressa nas páginas do Yomiuri Shinbun, mas os seus dias entre os criminosos japoneses dariam origem a “Tokyo Vice”, um livro de memórias editado em 2009.
É esse mesmo livro que inspira a série com o mesmo nome que chegou à HBO Max a 7 de abril, numa estreia com três episódios em simultâneo, a que se seguem outros cinco. Ansel Elgort foi o ator escolhido para assumir o papel de Adelstein, o jornalista americano que procura destapar a corrupção existente no seio da polícia de Tóquio. Do outro lado da barreira está a perigosa máfia japonesa, que puxa todos os cordelinhos.
O livro foi adaptado por J.T. Rogers e a série foi deixada nas mãos de Michael Mann (“Heat”, “Colateral”, “Miami Vice”), no papel de produtor-executivo e realizador. O elenco conta ainda com a presença do conhecido Ken Watanabe, acompanhado de Rinko Kikuchi e Rachel Keller.
Adelstein não era um miúdo como os outros na sua nativa Columbia, no Missouri. Tinha um estrabismo pronunciado que acabaria por ser associado ao síndrome de Marfan, que causava problemas oculares, cardíacos e noutros órgãos importantes. Era alvo de bullying e, também por isso, começou a aprender karate. Daí ao curso de japonês, foi um pequeno passo — atrapalhado por uma queda acidental num poço de um elevador, que deixou algumas mazelas.
Decidiu ir estudar para Tóquio e deixou para trás a vida nos Estados Unidos. Foi no Japão que rapidamente aprendeu a língua e se tornou num dos únicos jornalistas estrangeiros a trabalhar na imprensa local. Em poucos anos, tornou-se num elemento essencial na ligação entre os yakuza e a polícia.
A relação com os mafiosos era também útil às organizações criminosas, que o usavam para expor os rivais. Pelo caminho, Adelstein conseguia furo atrás de furo. Era também uma figura curiosa, relativamente débil, sempre de chapéu e com um maço de cigarros de cravo.
Apesar de ser um país com um baixo nível de criminalidade, a influência dos yakuza fazia-se sentir a todos os níveis, das pequenas esquadras aos gabinetes dos políticos. Nem a polícia, nem a comunicação social ousavam ser demasiado duros com os crime organizado: as investigações nunca deveriam ir demasiado longe. Todos entendiam isso.
Por sua vez, os yakuza circunscreviam os limites da violência entre grupos. Os civis não deveriam ser magoados. Mesmo em caso de assassinatos, os culpados normalmente entregavam-se na esquadra no dia seguinte. “Apareciam na esquadra com a arma e diziam: ‘Fui eu.’ Iam para a cadeia durante dois ou três anos. Não se considerava que tinham efetivamente matado uma pessoa real”, revelou um antigo polícia à “The New Yorker”.
O dinheiro, claro, provinha de atividades ilícitas, sobretudo da extorsão feita a grandes empresas e bancos. Os métodos eram curiosos: membros dos yakuza alinhavam-se num balcão de um banco e, um a um, ocupavam todas as cadeiras. Cada um deles abria uma conta bancária com o valor mínimo, de forma a atrapalhar o funcionamento normal da empresa. Ao fim de pouco tempo, acediam a conceder empréstimos aos grupos criminosos que, logicamente, nunca seriam pagos. A reciprocidade era simples: os yakuza ajudava a cobrar outras dívidas. E assim todos estavam presos na teia da máfia.
O caráter honrado dos yakuza foi-se perdendo ao longo dos anos. Viraram-se para os assaltos e roubos e, durante a crise de 2008, envolveram-se em negócios milionários que enriqueceram as chefias. Tadamasa Goto foi um desses líderes que se mostrou muito mais implacável e impiedoso. Sob o seu comando, nem os civis estavam a salvo.
Goto terá sido o mandante do assassinato de Juzo Itami, um conhecido cineasta que, em 1992, morreu num aparente suicídio. Deixara uma nota escrita a justificar a decisão com problemas passionais. Anos antes, havia sido atacado à porta de casa e deixado com vários cortes na cara e pescoço.
Os seus filmes criticavam a postura dos yakuza e nem o ataque o parou. Foi Adelstein quem revelou a história, com a ajuda de uma fonte anónima: por ordem de Goto, Itami terá sido forçado a saltar do edifício e a forjar uma nota de suicídio. A partir daí, Adelstein ficou obcecado pelo líder yakuza.
As suas histórias elevaram-no a alvo a abater e, por várias ocasiões, foi violentamente espancado. Sofreu várias lesões graves no joelho e na coluna. As ameaças agravaram-se e Adelstein, perante a relutância do jornal em publicar mais artigos sobre Goto, decidiu demitir-se. Havia quem achasse que o norte-americano era apenas louco; outros que trabalhava para a CIA; mas também quem aplaudisse o perigoso trabalho de investigação.
Uma descoberta em particular provocou a raiva de Goto. Adelstein descobrira que o líder yakuza fizera um transplante de fígado num hospital americano, ele que estava numa lista negra dos serviços de informação norte-americanos. Nunca deveria ter conseguido entrar no país. A operação tornou-se imediatamente suspeita.
A investigação levou à descoberta de que o hospital de Los Angeles recebera Goto e muitos outros yakuza para transplantes. Segundo Adelstein, o visto de Goto havia sido autorizado pelo FBI, a troco de informação sobre outros criminosos japoneses. Muito dinheiro tinha passado de mãos para mãos. Goto teria pago bem mais de um milhão de euros pelo transplante.
O longo braço dos yakuza estava por todo o lado e Adelstein suspeita que terão sabido da investigação através de uma das suas fontes. A pressão aumentou e Goto abordou o jornalista e agendou uma reunião. No dia do encontro, compareceram dois membros dos yakuza. Adelstein não estava sozinho. Ia acompanhado de um polícia, ex-membro das brigadas contra o crime organizado.
“Apaga a história ou apagamos-te a ti”, atirou calmamente o mafioso, conforme revela Adelstein nas suas memórias. “Feito. Não vou escrever a história no Yomiuri”, respondeu. “Ainda bem. Se fosse a ti, saía do Japão. O velhote [Goto] está louco. Tens uma mulher, dois filhos, não é? Tira umas férias. Umas longas férias”, sublinhou o japonês. “Talvez esteja na altura de procurares outro tipo de emprego.”
Terminada a reunião, o acompanhante cumprimentou-o. “Fizeste a única coisa que podias fazer. Não há nenhuma história pela qual valha a pena morrer. Os heróis são apenas pessoas que ficaram sem possibilidade de escolha. Tu ainda tinhas uma e tomaste-a.” Mas, antes de se despedirem, recebeu outro conselho. Afinal, haveria algo por descobrir na história de Goto que o preocupava. Era sinal de que era algo importante. “Recua, mas não desistas da história. Descobre aquilo de que ele parece ter tanto medo. Tens que descobrir isso porque ele não vai cumprir este acordo. Estes tipos não se esquecem, senão vais viver toda a tua vida com medo.”
Adelstein acabaria por cumprir o prometido. Não publicou a história no Yomiuri, mas fê-lo no “Washington Post” em 2008. O hospital de Los Angeles foi ilibado de qualquer culpa, embora tenha sido provado que os médicos cirurgiões receberam várias ofertas.
A investigação teve consequências. Goto foi expulso da organização e transformou-se num padre budista — diz-se que dá azar matar padres e, por isso, é uma espécie se seguro de vida tirado por membros que temem o assassinato —, o mesmo fez Adelstein, para se precaver de potenciais ameaças.
Adelstein nunca deixou Tóquio. É lá que continua a trabalhar como jornalista, mais focado na política do que propriamente no crime. O poder dos Yakuza também minguou Estima-se que estejam reduzidos a pouco mais de dez mil membros em todo o país — longe dos mais de 90 mil de há duas décadas.
Sem medo, mas ainda protegido pela polícia japonesa, prepara-se para ver a estreia da série sobre a sua vida — e já prepara uma sequela, “Tokyo Private Eye”, que deverá ser lançada em 2023.