“Nunca gostaste de ouvir quão encantador és. Mas és. És encantador. Mas és um inútil do caraças. Por isso decidi deixar-te um guia para a vida sem mim.” Um Tony desmazelado e destruído assiste mais uma vez ao vídeo deixado por Lisa antes de morrer, vítima de cancro. É desta forma que, em “After Life”, Ricky Gervais nos apresenta a uma das suas mais atormentadas personagens. Quase todas são auto-biográficas, explica o comediante, mas Tony é a que está “mais próxima” de si.
A série que estreou em 2019 tornou-se num êxito global, apesar de dispensar grandes efeitos ou estrelas no elenco. Tem apenas seis episódios e desde 24 de abril que tem mais seis, graças à estreia da segunda temporada.
“Porque é que não haveria de ser [um êxito]?”, questiona Gervais. “Nunca tive dúvidas de que uma comédia sobre um homem com tendências suicidas e uma mulher que morreu de cancro poderia ser outra coisa senão hilariante.”
Ao seu estilo, o comediante britânico opera um jogo perigoso entre momentos que encolhem estômagos e entrelaçam gargantas com gargalhadas inesperadas. É um drama pesado com a dose certa de angústia e temperado pelo negro sentido de humor de Gervais, que roubou muita da sua vida para a entregar a Tony.
Jane Fallon, a sua companheira da vida real, não morreu, embora tenha servido de gatilho para que Ricky começasse a escrever o guião de “After Life”.
“Não consigo imaginar [uma vida sem a Jane]. Não me imagino a fazer o que quer que seja sem ela”, revela, acrescentando que num mundo sem a companheira, poderia transformar-se em Tony.
“Uma vez [a Jane] foi visitar a mãe a Brighton e a caldeira avariou. Não sabia o que fazer, por isso enfiei-me no sofá com o gato, debaixo do cobertor durante duas noites a ouvir a rádio — porque não conseguia sequer pôr a televisão a funcionar. Da vez seguinte, deixou-me instruções. Fez um desenho dos comandos e de tudo o que faziam. Mesmo assim, tive que lhe ligar. Acho que desabaria emocionalmente sem ela. Não saberia como lidar com isso.”
Dessa visão apocalíptica, Gervais saltou para outra ideia: “Imagina que perdes tudo e não queres saber de nada. Podes fazer tudo o que te apetece.”
O amor que inspirou “After Life”
Por perder tudo, Gervais referia-se a uma pessoa. “A minha resposta é perderes a tua companheira de vida.” A companheira a que se refere é Jane Fallon, que o acompanha desde 1982, ano em que se conheceram, ainda estudantes, e começaram uma relação que permanece intacta.
Juntos desde os tempos de faculdade, passaram tempos difíceis num pequeno e apertado apartamento de Londres. De repente, aos 40 anos, Gervais deixou para trás uma carreira musical falhada (já lá vamos) e um trabalho de escritório para se tornar numa estrela mundial à boleia do enorme sucesso de “The Office”. Jane era uma produtora televisiva que se tornou numa romancista de sucesso.

Alguns dos momentos mais duros de “After Life” chegam em forma de flashbacks de Tony e da mulher Lisa, cenas roubadas ao dia a dia do casal que está junto há 38 anos. “A Jane e eu estávamos no sofá a beber e a disparatar e eu pensava ‘Posso pôr isto na série'”, revela da cena que, diz, acontece regularmente lá por casa.
Acerca da relação, o comediante cita a personagem de Penelope Wilton — uma viúva que debate recorrentemente a vida e a morte com Tony, em algumas das cenas mais impactantes da série —, que diz que preferia viver a sentir saudades do marido, do que se fosse ele a ter saudades dela. “É assim que eu me sinto. Mas eu também quero morrer primeiro — e isso é egoísta.”
Ao som de Ricky
Comediante brilhante, argumentista dotado e excelente ator. O que poucos sabem é que a veia artística de Gervais também se estende à música. Em 1982, Ricky tinha menos 30 quilos e ostentava um guarda-roupa irreverente e um penteado à David Bowie. Era o vocalista de uma banda que foi um fenómeno efémero.
Tinha 22 anos quando se juntou ao amigo Bill Macrae e formou os Seona Dancing, que tocavam um puro som dos 80 com muitos sintetizadores, gel e brilhantes. Dali resultaram apenas dois singles, algumas aparições na televisão e um rótulo de imitadores de Bowie.
A aventura durou apenas dois anos, mas ainda foi a tempo de tornar “More To Lose” num êxito nas Filipinas.
“Os singles falharam e foi o fim da coisa. Agora que sou famoso numa área diferente, as pessoas estão sempre a encontrar imagens minhas em que estou magro e jovem. É terrível, não é? Tinha maxilares e um encantador cabelo denso”, revelou ao “Entertainment Inquirer”. “Estou quase feliz que isso não tenha dado certo. Por esta altura estaria morto.”
À exceção de uma curta passagem pela indústria como agente de uns Suede em início de carreira, Gervais nunca mais atuou profissionalmente, mas a paixão pela música permanece. Os temas que compõem a banda sonora de “After Life” são outro dos pequenos tesouros escondidos da série — e todos eles saíram da coleção privada do comediante, que pela primeira vez conseguiu montar a playlist que sempre quis.
“Nunca tive um orçamento como este [para a banda sonora], por isso cometi loucuras”, revela. “Normalmente, o orçamento faz-se com o que sobra, especialmente em televisão, e acabamos por usar músicas genéricas. Desta vez escolhi os maiores artistas e as minhas canções favoritas. Já tentei fazer isto, mas nunca consigo ter dinheiro para tudo.”
A possibilidade de selecionar os temas um por um, significaram que cada cena tem a balada e as letras certas. “Até coloquei tudo no guião, por isso as montagens combinam com as músicas e são temas realmente comoventes. Dão vida às cenas. Há muito pouca coisa que bata a música. É como fazer download de emoções.”
Não surpreende, portanto, que a ação seja pintada com temas dos artistas que compõem o seu top de álbuns preferidos. E, sim, vai poder ouvir “Life on Mars”, de David Bowie, ou “Heart of Gold”, de Neil Young, entre muitas outras pérolas.
A morte, a dor e o riso
Contrariamente à história, Ricky não perdeu a mulher, embora tenha tido que enfrentar a morte dos pais no espaço de dois anos. O pai faleceu em 2002, dois anos depois da mãe, que foi vítima de um cancro, tal como Lisa na série.
Embora confesse que nunca entrou num estado depressivo e suicida — e muito menos recorreu a drogas —, teve uma relação muito próxima com aquele que é, possivelmente, o tema que paira sobre toda a série: o luto.
Em 2011, o comediante recordava a mãe e essa luta com a dor através da memória, muitas vezes um dom, ocasionalmente uma espécie de maldição. “Estarei a comer e a beber demasiado entre amigos e família, a celebrar a vida e a recordar aqueles que também o fizeram mas que já não o podem fazer. (…) Uma delas fez, de forma altruísta, o seu melhor por mim durante toda uma vida”.

Muita dessa dor foi transportada para a série, mas como Gervais nunca gosta de se levar demasiado a sério, tudo é equilibrado com a dose certa de humor no timing perfeito. Não é para todos, compreende o humorista que explica que “muitas pessoas não estão habituadas a ver este tipo de história na televisão”.
O cancro da mãe serviu de ferramenta para dar origem ao debate de “After Life”, até porque espelha um dos maiores medos do criador. “Não é estar morto, porque não faço ideia o que isso é. (…) O meu maior medo é que me digam: ‘Restam-te seis meses e vão ser os piores seis meses da tua vida.’ Que inferno”.
Se na obra de Gervais não há lágrima sem o devido comic relief, não seria diferente na sua própria vida. “Lembro-me do funeral do meu pai, estávamos todos a disparatar e a rir, ao ponto de termos que ir ter com o padre: ‘Desculpe lá isto. O pai tinha 83, se tivesse 50 estaríamos a rir-nos muito menos”, recorda.
Nem o funeral da mãe terminou sem que houvesse espaço para uma troca de nomes, um engano ao padre e uma gargalhada geral. “Estava lá eu, a minha irmã Marcia e os meus irmãos Bob e Larry. Mas o Bob preparou uma partida. De repente, o padre diz: ‘A Eva deixa para trás quatro filhos queridos: Ricky, Bob, Marcia e Barry. O Larry virou-se imediatamente para nós, que estávamos a chorar de riso — e o padre a achar que estávamos todos loucos.”