A alimentação saudável nunca esteve tão em evidência como agora, mas a sobrecarga de informação leva, muitas vezes, à desinformação. Em conversa com a NiT, Conceição Calhau, professora catedrática na NOVA Medical School — onde coordena a licenciatura em Ciências da Nutrição, o mestrado em Nutrição Humana e Metabolismo e a área académica de Nutrição e Estilos de Vida — explora a dualidade entre o crescente conhecimento científico e a propagação de crenças incorretas. E os perigos do sal.
A investigadora sénior do CINTESIS e do laboratório associado RISE tem 50 anos, com mais de 30 de experiência nas suas áreas de eleição. E uma coisa é certa: Conceição Calhau não se farta de alertar para o impacto do consumo excessivo de sal nas refeições. Além da importância da implementação de medidas para reduzir esta rotina tão instalada nas cozinhas portuguesas.
Quais são os principais mitos associados à alimentação saudável?
O próprio mito de “alimentação saudável”. O que cada um considera saudável é mesmo o problema, quer na identificação deturpada do “saudável”, quer na dose. Ou seja, qualidade e quantidade.
Pode explicar melhor?
Na qualidade, há muita confusão nos temas do açúcar, dos cozidos e grelhados, da gordura, dos lights, etc.; na quantidade, entende-se que se é “saudável”, quanto mais melhor.
Quais os maiores desafios que as pessoas enfrentam ao tentar adotar uma alimentação saudável?
Em primeiro lugar, o acesso ao conhecimento. Saberem o que, de facto, é saudável e quais as prioridades do que comer: quando e quanto. Em segundo lugar, a praticabilidade — sabemos em teoria, mas não conseguimos executar porque nos faltam meios de acesso a esses alimentos. Sejam condições económicas ou disponibilidade desses alimentos.
Ter conhecimento é a base?
Sim. Se pensarmos bem, o saber preparar os alimentos já começa a não passar de geração para geração. Não temos o tempo de qualidade, sobretudo nas famílias, em que mãe e pai têm percursos profissionais exigentes em horário. As crianças também têm cada vez menos tempo para estarem em casa e poderem participar na confeção das refeições. Caminhamos a passos largos para que o pronto a comer seja a grande oportunidade, além de uma ameaça.
Como podemos identificar as verdadeiras informações nutricionais no meio de tantos dados?
A dificuldade é grande. Hoje, o desafio não é o acesso, mas conseguir distinguir o correto do falso. As fontes de informação devem ser credíveis e não quem fala de tudo e de nada.
Nunca como agora foi tão grande o conhecimento científico sobre alimentação. Como encara toda a investigação?
Temos cada vez mais investimento na investigação biomédica e clínica em tópicos de alimentação e nutrição. Esta investigação relaciona-se com a perceção de que a alimentação influencia a saúde (e não apenas o peso) e que os hábitos alimentares inadequados são a principal razão modificável associada às doenças mais prevalentes.
Quais?
Falamos de doenças crónicas não transmissíveis como cancro, doença cardiovascular, diabetes, doenças neurodegenerativas, entre tantas outras.
E em casos como o aparecimento da última pandemia?
Se alimentação inadequada compromete a saúde, quando surge um novo agente infecioso – como aconteceu com o novo coronavírus e a COVID-19 – percebemos que estar debilitado do ponto de vista metabólico aumenta a probabilidade de quadros mais severos.
Como é que a dieta e o estilo de vida podem influenciar a saúde?
A ingestão excessiva de sal, baixa em potássio, está relacionada com a hipertensão. Ter níveis baixos de vitamina D influencia a pressão arterial (por inibir a síntese de renina). Ter uma dieta rica em gordura e proteína animal, baixa em hortícolas, leguminosas e fruta, altera a microbiota intestinal.
Tudo variáveis que se podem alterar.
Logo, nada de estranhar que com estas variáveis modificáveis podemos cuidar melhor da saúde e, repito, não estou a referir apenas o peso. A alimentação e o estilo de vida influenciam o sistema endócrino, o imunológico, por exemplo, o que explica em parte tudo isto.
Nesse contexto, quem quer saber como alimentar-se corretamente corre riscos de se perder?
Se até há muito pouco tempo poderíamos dizer que o ignorante numa matéria poderia ser alguém que não tinha acesso ao conhecimento, hoje será aquele que não consegue distinguir o certo do errado. Sim, estamos sobrexpostos a conteúdos sobre alimentação. E isso, mais do que excessivo, é até tóxico.
Mas estamos no bom caminho ou os mitos e crenças erradas estão a sobrepor-se ao verdadeiro conhecimento científico?
Depende do crivo de cada um. Distinguir o certo do errado… a tentação é grande porque a procura existe e sabemos que a procura condiciona a oferta. A tentação de assumir conteúdos-treta como verdades incontestáveis é grande porque a sociedade precisa muito de respostas. A tentação de escrever/falar do que não se sabe começou a ser maior pela pressão das redes sociais e a criação da figura do influencer.
Muito se tem falado sobre os malefícios para a saúde do consumo excessivo de sal, mas tem sido difícil reduzi-lo. Como se justifica que se continue a consumir sal em tão grandes quantidades?
O tema é muito relevante. Dentro dos hábitos alimentares inadequados associados a doenças, o consumo excessivo de sal é um dos fatores modificáveis mais importantes, em particular porque a hipertensão arterial e o AVC em Portugal continuam a ser um problema longe de ser resolvido. A mortalidade e a doença são muito prevalentes.
De que valores falamos?
Continuamos com um consumo muito acima do que se considera o máximo diário. Está nos 5g/dia para um adulto e, em média, em Portugal temos consumos que já foram de 11g/dia e agora baixaram para os 7g/dia. Claro que média significa que existem ainda muitos portugueses com consumos diários, estimados pela excreção urinária (urina de 24H), de mais de 30g/dia. Claramente um problema.
Sem se limitar ao consumo do sal, certo?
Sabemos que a este comportamento está associado (entre outros estilos de vida) um consumo baixo de potássio, em geral presente nos alimentos frescos como leguminosas, hortícolas e fruta. Ou seja, se o consumo excessivo de sódio (cloreto de sódio presente no sal) é mau, pior fica quando a razão sódio-potássio aumenta por consumo excessivo de um e muito baixo do outro.
De que forma se pode reduzir o consumo do sal?
Em 2019, coordenei com o professor Jorge Polónia (ilustre médico na área da hipertensão) o Menos Sal Portugal. Um projeto de intervenção numa amostra da população portuguesa, feito em parceria entre a NOVA Medical School, a CUF e a Jerónimo Martins, onde os voluntários tiveram um seguimento quer clínico, quer de orientação na lista de compras e na preparação de refeições. Tivemos resultados impressionantes, que reforçaram a importância destas medidas, articuladas, de capacitação da população para que mude comportamentos – a pressão arterial diminuiu com a alteração do comportamento alimentar.
E pode-se reduzir o sal sem sacrificar o sabor das refeições?
A recomendação é usar ervas aromáticas e especiarias. Deve-se aprender, muitas vezes, a fazer combinação de alimentos e reaprender técnicas culinárias de forma a preservar e intensificar sabores. O sal acaba por mascarar o verdadeiro sabor dos alimentos, por isso é mesmo um mito que sem sal significa sem sabor ou sem graça. Pelo contrário.
Como assim?
O uso do sal significa, sim, ocultar os melhores sabores. Em restauração, pode até ser usado para disfarçar alimentos mais estragados. Por isso, cuidado com o muito salgado – pode estar a comer gato por lebre. Na NOVA Medical School fazemos workshops para a população em geral e é a oportunidade de aprender a fazer refeições com muito menos sal. Temos um kitchen lab onde muitos cursos acontecem.
Quais são, na prática, os reais malefícios de um consumo excessivo de sal?
Hipertensão, cancro gástrico, entre muitos outros. Até obesidade, não porque sal tenha calorias, mas por outras relações. A absorção intestinal do sódio faz-se acompanhar de absorção de glicose (açúcar), ou seja, quanto mais sal, mais eficiente se torna a absorção deste hidrato de carbono. Por outro lado, existe uma regulação hormonal que fica estimulada direta e indiretamente pelo sódio. Mais, o padrão de consumo de mais sal está em regra associado a refeições mais ricas em gordura saturada, proteína animal, alterações da microbiota intestinal, enfim, uma constelação de relações bioquímicas e endócrinas que justificam a associação com a obesidade. Comer menos sal é um comportamento preventivo de muitos males.
Como podem as autoridades de saúde contribuir para a redução desse consumo?
Em primeiro lugar, esclarecer que o consumo excessivo de sal em Portugal não tem como maior responsável a indústria de forma isolada. Muitos estudos mostraram que era a adição de sal na preparação das refeições em casa. Mostraram também, imagine-se, que o maior responsável era a sopa (a que se come fora de casa), uma vez que a estratégia para que o consumidor goste de sopa é colocar mais sal. O sal das refeições de restaurante também é ainda um problema.
De que forma exatamente?
Um bom exemplo disso foi um pequeno estudo que o professor Jorge Polónia fez, há uns 10 anos, em que recolheu amostras de refeições “caseiras” de restaurantes na região do Grande Porto, aqueles restaurantes que muitas vezes ouvimos que são de “comida caseira”. A conclusão foi de que 75 por cento do máximo do consumo diário de sal já era obtido apenas numa refeição dessas. Ou seja, se ao almoço vou ao restaurante de “comida caseira”, 75 por cento do máximo já foi! Atenção que com isto não concluímos que os “outros tipos de restaurantes” não teriam o mesmo problema, provavelmente até têm ainda mais.
E qual deve ser o papel da indústria?
Quando o professor Fernando Araújo era secretário de estado-adjunto para a saúde e se avançou com a taxação do açúcar nas bebidas, foi feito um plano com medidas relativamente ao sal. Sei porque estive envolvida nesse trabalho. Não tinha responsabilidade política no Ministério da Saúde ou na Direção-Geral da Saúde, mas na altura coordenei um estudo de investigação, IOGENERATION, sobre deficiência de iodo em crianças em idade escolar, no norte do País. Pela sua importância, o trabalho recebeu financiamento europeu (EEA Grants) de quase meio milhão de euros.
A que conclusão chegou?
O estudo mostrou um problema: temos 30 por cento das crianças com deficiência (mais tarde fizemos uma pequena amostra em Lisboa e 60 por cento também tinham deficiência). Ora a nível mundial este problema – deficiência de iodo associada a consumo excessivo de sal – é comum e é pensado pela OMS. As orientações são claras: reduzir o consumo de sal, mas que este seja iodado.
Houve resultados práticos decorrentes dessas descobertas?
Para frustração nossa, investigadores, e do professor Fernando Araújo, o assunto foi levado à Comissão Parlamentar da Saúde (dezembro de 2018) e não aconteceu rigorosamente nada. Eu levei a proposta de resolução de legislar os níveis de iodo no sal, que não existe ainda em Portugal, e que pelo menos fosse aproveitada a oportunidade de legislar a redução do teor de sal no pão (além da sopa, o pão seria outro dos responsáveis do consumo excessivo de sal). Além disso, era obrigatório que o sal no pão fosse iodado. Assim teríamos duas soluções. Nada inventado, pois esta medida existe já em muitos países da Europa e com resultados importantes.
Houve consequências?
Nada. Aliás, e isto que fique muito claro, fizemos o estudo, publicamos vários artigos científicos em revistas internacionais, tudo aquilo que o investigador é treinado a fazer e deve fazer com o dinheiro público. No entanto, e porque isso já terá mais que ver com a minha forma de estar, dinheiro público da investigação no mínimo deve trazer benefícios, avanços à sociedade. Fizemos relatórios para Ministério da Saúde, Ministério da Educação, DGS, DGE e ASAE. Mais uma vez, nada aconteceu.
Entretanto houve evolução?
Estamos a fazer um estudo nacional em grávidas (IOMUM, coordenado por FMUP, Elisa Keating e uma task force internacional orientada por Mafalda Marcelino) e continuamos a ter este problema: deficiência em iodo.
É autora do livro “Deixemo-nos de Tretas: A Ilusão da Comida Saudável”. O que a motivou a escrevê-lo?
Colocar os pontos nos is, mostrar que existe ciência na alimentação e na nutrição e que esta não é de fé. Tive ainda a motivação de poder ajudar e partilhar, de forma acessível, uma ciência para todos, acumulada numa vida académica de 30 anos de experiência. E é um grande estímulo influenciar comportamentos e dar ferramentas para a mudança de atitudes face à alimentação.
Quais considera as tendências no futuro da alimentação saudável?
Não consigo fazer previsões, pois o mundo transforma-se de forma muito rápida e com influências que nos escapam. Posso ter esperança que a evolução seja positiva pela consciência da longevidade e que esses mais anos de vida que conquistamos devem ser com saúde. A alimentação é fundamental, mas desde o início da vida e não apenas em determinada idade (embora qualquer momento é o momento).
E em termos de expetativas?
Tenho a expetativa política de serem criadas prioridades na área da alimentação, como uma Secretaria de Estado dentro do Ministério da Saúde. Ou que pelo menos os políticos se assessorem de entendidos na matéria de forma séria. E claro, que vários ministérios estejam alinhados, para evitar que o da Saúde diga que o das Finanças não permite verbas.