Ginásios e outdoor

Assédio nos ginásios. “Somos vistos como garanhões, mas nunca pensei que fosse assim”

Os homens também são (muito) assediados. Samuel é personal trainer e já foi alvo de "verdadeiras torturas", toques e insinuações.
É um problema comum.

“Já fui assediado mais do que uma vez, sempre por mulheres.” Samuel Silva (nome fictício) tem 35 anos e é personal trainer há mais de uma década. Sempre soube que os ginásios eram um terreno fértil para insinuações, olhares e flirts, mas nunca pensou sentir-se tão desconfortável ao ponto de não lhe apetecer dar mais aulas. O PT passou por vários ginásios em diferentes pontos do País e o assédio é transversal a todos eles, daí não identificar nenhum em particular. Já esteve estado envolvido em situações delicadas, prefere manter o anonimato.

Samuel pratica desporto desde que se lembra — na escola adorava todas as modalidades. Lembra-se de ser miúdo e ficar impressionado com as imagens dos culturistas. “Entrei cedo para o ginásio e fiquei rapidamente fascinado com a musculação. Embora fosse atlético, era magro, por isso, mais tarde dediquei-me mesmo ao culto do corpo.” Alto e musculado, era difícil passar despercebido.

Atualmente é conhecido por ajudar dezenas de pessoas a chegarem à imagem que procuram. “Adoro o que faço, mas como em qualquer profissão, há nuances que me deixam desconfortável”, desabafa Samuel, aludindo ao assédio que existe no meio.

“Já sabia que era muito provável que acontecesse, porque é uma profissão que exige muito toque e proximidade. Mas nunca pensei que fosse assim.”

O padrão é sempre o mesmo. Inscrevem-se para serem acompanhados por personal trainer, fazem algumas investidas, Samuel retrai-se e perante uma reação negativa desistem das aulas.

“O assédio é real e frequente. Já tive alunas que, no final do treino, sugeriram que os alongamentos fossem feitos fora do ginásio, por exemplo. As insinuações e avanços — como mensagens a exigir que assumisse o que sentia por elas — são outra constante.”

O caso que mais o marcou até hoje aconteceu com uma cliente mais velha, casada, “com família constituída”, frisa. “Foram meses a afastar e a tentar ignorar as investidas e os toques”, recorda.

No início, Samuel tentou aligeirar a situação e “levar tudo na brincadeira”, mas a intensidade e a frequência tornaram-se impossíveis de ignorar. “Mas, ao mesmo tempo, só pensava que tinha de conseguir lidar com aquilo, porque era o meu trabalho que estava em jogo.”

Casos difíceis de gerir

“Por mais que eu a afastasse, voltava sempre à carga”, conta. “Tocava-me ora no peito, ora no braço, e fazia-me convites constantemente: para sair, relaxar… Embora mantivesse uma postura profissional, sentia sempre aquela pressão de ser uma cliente, o que fazia com que eu tentasse tolerar.”

A situação tornou-se “uma tortura” para Samuel. “Nos dias em que tinha sessões marcadas com essa aluna, ficava ansioso e sem vontade de dar aulas”, refere. Procurou arranjar soluções que não o prejudicassem profissionalmente, mas que acalmassem as investidas.

“Se o meu aluno anterior fosse alguém com quem tinha confiança, pedia-lhe para continuar a treinar durante a sessão dela, não muito longe de nós. Sempre que estavam pessoas por perto ela acalmava”, descreve.

Quando finalmente percebeu que presencialmente não iria conseguir o que pretendia, passou para a “perseguição por mensagens”. “Enviava-me SMS com insinuações e sobre assuntos que não estavam relacionados com os treinos. Sempre que isso acontecia, não respondia —, mas chegava a ser desesperante. E no dia seguinte tinha de a encontrar no ginásio, para mais uma aula.”

O assédio prolongou-se durante meses. Samuel sentia-se impotente para pôr cobro à situação se tratar de uma cliente e não sabia como lidar com isso. Comentou com alguns colegas e, sendo homem, sentia “vergonha” por estar num papel que nunca quis para si. “Muitos até podem gostar deste tipo de atenção e até podem tirar partido dela. Não acho correto e é muito desconfortável”, frisa.

“Sentia-me incapaz de fazer o meu trabalho, não me sentia à vontade. Tinha receio que qualquer palavra ou movimento meu pudesse dar azo a abusos”, desabafa. E acrescenta: “A situação tornou-se insuportável e até tinha medo de ter problemas com o marido dela, como vi a acontecer com outros colegas.”

Apesar da tensão permanente em que vivia, Samuel conseguiu fazer com que a cliente percebesse que a relação de ambos jamais tomaria outro rumo que não o profissional. “De três treinos semanais, passou para dois e depois para um. Passado pouco tempo disse-me que já não tinha tempo para continuar a treinar e desapareceu. Nunca mais a vi. E foi um alívio.”

Um episódio de assédio pode mudar tudo

“Os personal trainers são vistos como garanhões, que podem ter todas as miúdas do ginásio. Esta ainda é a imagem que muitas pessoas têm”, admite Samuel. Porém, isso foi algo que nunca quis para si. “Aquilo que sempre quis, — e quero —, é ser reconhecido pelo meu profissionalismo”, realça.

Após a “situação traumática” que viveu, estabeleceu regras para si próprio para que tentar evitar que algo do género se repita. “Ignoro as investidas e tento esclarecer logo que nunca irá passar de uma relação profissional. Não deixo que ninguém passe dos limites. Cumprimento homens e mulheres da mesma forma — com um toque na mão. Quero deixar claro que, para mim, os alunos são todos iguais“, explica.

Entre corpos musculados, suados e roupas justas, os ginásios têm fama de ser “um terreno fértil para o engate”. O assédio é recorrente. Porém, acontece em muitos outros contextos profissionais, a homens e, sobretudo, mulheres

Um estudo sobre o assédio sexual e moral no local de trabalho em Portugal, realizado em 2015 (e coordenado pela socióloga Anália Torres), aferiu que 14,4 por cento das 1243 mulheres inquiridas já tinham sido assediadas em contexto laboral. No caso dos 558 homens inquiridos, 8,6 por cento dos homens passaram pela mesma experiência no local de trabalho.

A investigação aferiu também que a abordagem mais comum, tal como aconteceu com Samuel, consistiu em “perguntas intrusivas e ofensivas acerca da vida privada”. Contudo, metade dos inquiridos assediados não tomou quaisquer medidas com o intuito de denunciar os casos, apenas “fizeram de conta que não notaram”.

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