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Ginásios e outdoor

Carla André é a primeira portuguesa a fazer uma ultramaratona de 400 quilómetros no deserto

Começou a correr depois de um grave acidente há 20 anos. Já fez 99 ultramaratonas e, na última, na China, "houve momentos de desespero e choro".

No dia 5 de outubro, Carla André estava na China, a correr a Ultra Gobi, uma ultramaratona que diz ter sido uma celebração da vida. Exatamente 20 anos antes teve um grave acidente de viação que por pouco não lhe custou a vida. Aconteceu no dia do aniversário do irmão mais novo, no caminho para o ginásio. “Ia a 180 quilómetros por hora e despistei-me numa curva da A8. Foi um milagre autêntico, eu voei”, conta a atleta, de 48 anos.

Como resultado, fraturou a L5, uma vértebra lombar na parte inferior das costas. Durante dois meses ficou imobilizada no hospital, foi recuperando e a “fratura ficou consolidada”. Teve dores intensas durante vários anos, mas foi melhorando, até fazer uma viagem ao México onde, conta à NiT, começou a caminhar “e a sentir-me bem”.

Quando voltou a Lisboa, manteve a rotina das caminhadas e, aos poucos, foi introduzindo a corrida. “Fui aumentando a distância, pouco a pouco, e aproveitava para libertar o stress do trabalho”, diz a consultora bancária.

Em 2010, fez a primeira prova de 10 quilómetros, a Corrida do Tejo. A partir daí, ano após ano, foi aumentando as distâncias. Cinco anos depois, experimentou algo diferente que a apaixonou. “Participei na Maratona das Areias, com 250 quilómetros, no Sahara, em Marrocos. Adorei o ambiente, o deserto”.

A jornada começou ali. Agora, tem o objetivo de conhecer todos os desertos do mundo. Orgulha-se de já ter corrido no deserto de 22 países (Chade, Chile e Mauritânia são alguns exemplos). “É o que me faz feliz. Há sítios frios, com montanha, com água, e essa variedade faz-me sentir bem”.

A ultramaratona Ultra Gobi, na China, é mais um exemplo. É uma das maiores: são 400 quilómetros no deserto. A organização abriu a possibilidade, este ano, de atletas de todo o mundo participaram e serem “Gobi Dreamer”. Para isso tinham de contar a história de vida. O júri analisou todas as candidaturas e convidou cinco pessoas. Carla André foi uma delas. “Contei porque é que tinha de lá estar, que tinha um caminho pelo deserto e que faziam 20 anos desde o acidente”.

Um dos postos de controlo.

Prova no deserto

O que a levou até à China foi a junção de ser uma data especial, uma prova no deserto e a distância. Já tinha feito 310 quilómetros mas queria mais. A prova que percorre nos caminhos da rota de seda é de orientação, ou seja, não está marcada e os atletas têm de seguir o GPS. “Eu perdi-me e no total fiz 433 quilómetros”.

Tornou-se na primeira portuguesa a fazer uma ultramaratona de 400 quilómetros (e um pouco mais). “Pelo que sei, e com as pessoas com quem falei e conheço, é um recorde, mas quero confirmar com a Federação”, diz à NiT.

Foram 135 horas, 22 minutos e 7 segundos de prova, onde o mais difícil foi o frio “que muitas pessoas acham que não existe num deserto”. Teve temperaturas negativas durante a noite, entre os 5 e os 10 graus, e depois muito calor durante o dia. “Fui muito bem equipada e levei um casaco para 25 graus negativos”.

Houve momentos de desespero e de choro “também por causa do sono”. É uma distância grande e muitos dias de prova. “Não sei se dormi mais de cinco horas nos cinco dias e meio de competição”. No percurso, há 38 postos de controlo, sendo que 10 são “zonas de descanso” onde dá para dormir numa tenda. Mas Carla André não gosta “de parar muitas horas para dormir”.

Nesses locais, estavam também as caixas de alimentação que tinham sido previamente preparadas pelos atletas. “Levei 25 mil calorias, mas tive uma mala que se perdeu e tive de comprar coisas lá”. Tinha, por exemplo, noodles, frutos secos e barras.

Tinha de garantir que saía dessas zonas sempre com duas mil calorias na mochila para aguentar os quilómetros seguintes. Em todos os postos de controlo há água para os atletas. Para além da comida, também era obrigatório levar um bastão “porque havia a possibilidade de encontrar animais selvagens”. Tinham de ter GPS, telemóvel com satélite, um saco-cama, kit médico, powerbank, entre outros.

O bastão que era obrigatório levar.

O caminho até à meta

“A chegada é fenomenal”, conta, “e uma das coisas que fizeram foi pedir a cada um dos atletas que escolhesse uma música”. Carla André ouviu “Grateful”, da Rita Ora, depois de 433 quilómetros. “Ela dá graças pelo que foi menos bom para dar valor ao que é bom e isso foi o que me aconteceu. Fartei-me de chorar”.

A organização foi feita por pessoas locais “que iam dando força ao longo do caminho, que nos fizeram sentir em casa e acolhidos e isso marcou-me muito”. Para Carla, mais do que correr, “é poder conhecer países e culturas diferentes”. Nesta prova, só queria terminar, até porque sabia que a preparação não tinha sido a melhor, já que foi difícil conciliar os treinos com o trabalho, recorda.

Explica que o essencial “é pôr quilómetros nas pernas”, mas que a parte psicológica é igualmente importante. “Vai ser a resistência da cabeça a marcar a diferença. Tens sono? Paciência. Chorei muito, de dores, de desgaste, de sono, de frio”, conta.

A rotina de treino divide-se entre corrida e treino funcional que “consegue ser ainda mais importante porque prepara os músculos para evitar lesões”. Durante a semana faz treinos mais curtos e longos ao fim de semana. O treino funcional não é muito elaborado “e é em casa porque não tenho tempo de ir ao ginásio”.

Depois de tantos quilómetros, só sente as dores no corpo durante dois dias. “Sou vegetariana e acho que isso ajuda”. A prova acabou no dia 9 de outubro, quinta-feira, fez a viagem de regresso, e na segunda-feira de manhã já estava a trabalhar.

Nos pés já tem 119 provas: 99 ultramaratonas e 20 maratonas. A prova da China era suposto ser a número 100, mas não foi possível. Pode sim ser a de dezembro, em que já pensa, na Mauritânia.

“Quando estamos numa cama de hospital sem nada, com a vida por um fio, começamos a ver as coisas de forma diferente. O acidente foi uma coisa má, mas correu bem. Tenho sorte em poder correr, viajar, ter saúde. E tenho esta maluqueira que consigo fazer”.

Carregue na galeria para ver todos os momentos da Ultra Gobi na China.

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