“A prótese só me atrapalha [nos treinos].” Aos 15 anos, João Jerónimo, de Leiria, teve um acidente que culminou na amputação total da perna direita. Agora, é um atleta que se desdobra entre duas modalidades e o trabalho a tempo inteiro.
“No verão de 2004, ao voltar da praia com uns amigos, passei, como era habitual, pela fábrica onde a minha mãe trabalhava. Quando vi as máquinas, não resisti”, começa por contar à NiT. À conta de tantas “voltinhas”, os equipamentos já não tinham segredos para João. Porém, daquela vez, a “brincadeira” teve um desfecho muito diferente.
“Despistei-me com a empilhadora, acabei por ir contra a parede e fiquei com a perna esmagada”, conta. Os médicos tentaram de tudo para que não perdesse o membro, mas foi impossível — levou 124 pontos e foi operado 51 vezes. “A lesão era tão extensa que sempre que era preciso fazer o penso, tinham de fazer nova cirurgia sob anestesia geral.”
João praticava andebol desde quatro anos, a grande “paixão da sua vida”. Antes do acidente tinha sido convocado para a seleção e vivia um bom momento na carreira. Quando acordou no hospital e percebeu que ia ficar, pelo menos, sem metade da perna, sentiu-se “revoltado”.
“Não ia conseguir fazer o que os miúdos normalmente fazem.” Um mês depois do acidente, ainda entre cirurgias para tratar infeções, a total amputação do membro e o acompanhamento psicológico, resolveu “deixar-se de lamúrias”. “Enfrentei a nova realidade e comecei a reabilitação com outro pensamento”, recorda.

Quando já estava à vontade com a nova condição e conseguia realizar as tarefas básicas, decidiu tirar o curso de oficial de mesa e cronometrista de andebol para estar perto da modalidade e dos colegas. “Ainda acompanhei durante uma época inteira, mas parei por ali porque me custava imenso não estar dentro de campo”, refere.
Quando voltou à escola, depois do período de adaptação, quis voltar a praticar desporto. “Experimentei o ténis em cadeira de rodas, mas achei que era muito para betinhos. Também fiz lançamento de peso, mas pareceu-me uma modalidade muito parada.”
A seguir, dedicou-se à natação. “Além de aprender a nadar, ajudava-me com a cicatrização da ferida”, explica. Mas o bichinho da competição não o largava. “Comecei a entrar em provas e fui campeão nacional e ibérico na versão adaptada”, conta. Quando não conseguiu classificar-se para os paralímpicos por “quatro milésimos de segundo” desanimou e acabou por desistir.
No entanto, por mais desportos que experimentasse, nenhum deles estava à altura da sua grande paixão. Por isso, todos os anos enviava e-mails para a federação nacional de andebol a perguntar quando poderia voltar a praticar. “Não havia nenhuma regra para as pessoas em cadeira de rodas”, refere.
A insistência deu frutos, e passados uns anos surgiu a possibilidade de fazer uma formação da modalidade em cadeiras de rodas. “Nem pensei duas vezes. No dia marcado estava lá horas antes, tal era a ansiedade. No final, sugeri criar uma equipa de andebol em cadeira de rodas em Leiria. Não fazia ideia dos custos envolvidos, nem tinha atletas. Com o apoio da APD Leiria, que já tinha basquetebol adaptado, conseguimos”, conta. “A única coisa que me pediram foi ajuda com a tal equipa de basquetebol. Assinei logo o contrato”, confidencia.
A mudança para o crossfit
O atleta conciliava o basquetebol, com o andebol, mas ainda assim estava fora de forma. “Pesava 130 quilos e numa consulta de rotina a minha médica assustou-me com o resultado das minhas análises. Tinha os triglicerídeos e o colesterol tão elevados que podia ter um enfarte com apenas 25 anos.”
Voltou ao ginásio, mas não estava convencido. “Não era o que gostava e isso desmotivava-me”, refere. Uma amiga conhecia a situação de João e sugeriu que experimentasse a box de crossfit de um primo. Apesar do receio, João decidiu fazer um treino e adorou. “Levava-me ao limite. Acabava exausto e, no final da semana, via sempre resultados. Comecei finalmente a emagrecer e os valores das análises a melhorar.” ao todo perdeu 70 quilos.
Além da perda de peso, a nova modalidade trouxe outras vantagens: “Ajudou-me no andebol. Comecei a ficar mais ágil e com mais força.” Porém, com tantos treinos para encaixar no horário, teve de tomar uma decisão e o basquetebol ficou para trás.
Ainda assim faltava algo, a competição. “Comecei a fazer provas internacionais, mas online. Depois o Open [a primeira classificação para os CrossFit Games, uma das maiores competições do mundo] abriu a categoria adaptada e aí quis levar isto mais a sério.”
O crossfit adaptado é novidade em Portugal. A primeira prova do País surgiu em maio deste ano, nos Promofit Games, em Matosinhos. João participou e acabou por garantir o apuramento para o Wodcelona, uma competição em Barcelona.
O atleta de Leiria participou na prova espanhola que decorreu entre 15 e 17 de setembro na categoria “one point lower” para pessoas “que tenham apenas um ponto de contacto com o chão” quer utilizem próteses ou não. “Foi uma experiência ótima, muito positiva. Mas senti que muitas as horas que treinei não foram suficientes. Quando acabou senti-me motivado a treinar ainda mais”, afirma.
A vida dupla de João Jerónimo
O crossfiter tem um ritmo que para muitos seria “alucinante”. Acorda às seis da manhã e faz um treino, ainda em jejum, de cycling antes de seguir para o trabalho na Câmara Municipal de Leiria, enquanto assistente operacional na área de contratações públicas.
No final do dia, quem o quiser é encontrar é na box Crossfit Leiria Sul. “Depois chego a casa às 18 horas para despachar o jantar e o almoço do dia seguinte”, afirma. A alimentação é muito importante na rotina do atleta, que conta com a ajuda de uma nutricionista “para estabelecer um plano com tudo o que precisa”.
Ao todo treina, pelo menos, quatro horas por dia, seis dias por semana, com a quipa de andebol adaptado da Associação Portuguesa de Deficientes (APD) de Leiria, com quem foi campeão europeu e mundial em 2022.
Nesses momentos não quer saber da prótese. “Tenho de a amarrar à cintura para conseguir ter estabilidade, mas não consigo ter tanto controlo de movimentos como uma normal, por isso, prefiro estar sempre sem. Acho que só me atrapalha, mas no dia a dia não a dispenso”, remata.
João Jerónimo não é o único que considera o crossfit “a modalidade que lhe mudou a vida”. Rafael Vicente perdeu o braço num aparatoso acidente de braço e também não dispensa os treinos na box. Leia o artigo da NiT sobre a história do jovem de Coimbra.
Carregue na galeria para conhecer o desenvolvimento de João Jerónimo no desporto.