Pode dizer-se que são ciclistas de trazer por casa. Eram, até há pouco mais de um ano, o alvo de troça dos mais tradicionalistas: os ciclistas para quem, pedalar, é na rua e mais nada. Hoje, são uma comunidade ativa dentro e fora de portas. Muito por culpa de uma pandemia.
Jorge Caldeira é um adepto inveterado do ciclismo, mas nem sempre foi assim. Antigo praticante de BTT, afastou-se do desporto por motivos profissionais. Em 2016, um problema de saúde levou a que fosse submetido a uma cirurgia à coluna.
“Praticava motociclismo, só que a operação fez-me perder resistência nos ombros e a capacidade de manobrar a mota. Acabei por trocar as duas rodas da mota pelas duas da bicicleta”, recorda à NiT. Se quisesse praticar desporto, teria que escolher um desporto de pouco impacto: contratou um treinador, pegou na bicicleta e dedicou-se ao ciclismo.
O objetivo era sério: participar nas provas de competições amadoras. Conseguiu fazê-lo, graças a muitas horas de treino. Como nem sempre o tempo e a meteorologia permitiam que se fizesse à estrada — e porque chegava a treinar quase todos os dias, por vezes duas e três horas seguidas —, começou a fazer o que tanto chateava os mais tradicionalistas.
Comprou um rolo — o equipamento que permite transformar uma bicicleta normal numa estática —, instalou tudo na garagem e passou a pedalar a solo, virado para uma parede.
“Era completamente entediante. Tornou-se muito complicado, até psicologicamente, completar os treinos. Era preciso uma força de vontade brutal para fazer duas e três horas a olhar para uma parede”, conta. Ainda tentou ver filmes, mas nada funcionava. Pelo menos até que conheceu o Zwift.
O mundo do Zwift
Criada em 2014 é, no fundo, uma espécie de jogo online onde cada corredor tem a sua personagem e onde ciclistas se podem encontrar e fazer percursos lado a lado,em cenários virtuais que replicam rotas reais. Jorge encontrou nesta espécie de “desporto virtual” uma forma de aguentar os treinos caseiros e rapidamente descobriu que havia mais portugueses por lá.
Acabaria por ser ele a criar o grupo que agrega a maior comunidade de portugueses no Zwift, os TugaZ. Eram cerca de 500 quando algo impensável aconteceu. O mundo via-se frente a frente com uma pandemia e um brutal confinamento. Os ciclistas, fechados em casa, viraram-se para a única alternativa que existia.
“Assim que a pandemia surgiu, rapidamente atingimos os mil membros. Hoje somos mais de 3.500 pessoas”, conta. Nesse grupo estão incluídos muitos dos tais tradicionalistas, a quem Jorge chama de “anti-Zwifters”, hoje convertidos a este mundo digital.
“A pandemia abriu os olhos aos ciclistas que eram anti-Zwift porque nunca tinham explorado ou usado e que, hoje, treinam lá praticamente todos os dias”, nota.
Mais do que uma forma de treinar ou de manter a forma, o sucesso do Zwift explica-se, para Jorge, pela sua “componente social”. “É uma forma das pessoas conviverem. Existem outras plataformas do género mas que não vencem porque não têm essa parte social. Durante a pandemia chegámos a ter 40 mil utilizadores em simultâneo na plataforma.”
Se os números não impressionam, convém fazer uma nota importante: para tirar todo o partido do Zwift é preciso fazer algum investimento. Desde logo, é necessário ter uma bicicleta. Depois, é necessário o tal rolo.
“Existem dois tipos de rolo, o básico, que só envia informação para a plataforma em forma de potência — e que é como pedalar sempre em terreno plano. E depois há o rolo smart, que não só envia informação como a recebe e ajusta a resistência da nossa bicicleta. É mais realista”, explica. O rolo smart tem um custo de pelo menos 200€.
Há outro custo a contemplar, o da subscrição mensal, no valor de 14,99€. Por fim, basta apenas que tenha um telemóvel, um tablet ou um portátil. Mas se quiser levar a coisa mesmo a sério, terá que fazer como Jorge, que instalou dois ecrãs em frente à bicicleta: um Full HD e um 4K. Tudo para correr mais e melhor.
A verdade é que a maioria dos corredores nem sequer procura as corridas. Estão mais interessados nos passeios ou nos treinos conjuntos. E tanto é assim que, numa fase de desconfinamento, muitos dos que se conheceram online estão agora a repetir os passeios, mas na estrada.
“Os que residem mais próximos uns dos outros já organizam passeios e treinos na rua entre eles. E depois tiram fotos com os equipamentos que fizemos do grupo. Tenho muito orgulho nisso”, confessa.