“Nada é por acaso”, desabafou Jacqueline Calvalcanti, 26 anos, no final do combate com a francesa Zarah Fairn, que lhe deu a primeira vitória no Ultimate Fighting Championship (UFC), em Paris. A lutadora é a primeira mulher portuguesa a entrar na maior e mais popular organização de Artes Marciais Mistas (MMA) do mundo.
Em miúda nunca foi fã de bonecas, em vez disso preferia ficar com a mãe e os tios a ver campeonatos de artes marciais e capoeira, na televisão. Começou a praticar judo aos 9 anos, mas quando acabaram com a modalidade na escola que frequentava, “por falta de alunos”, virou-se para a capoeira.
Jacqueline nasceu no bairro problemático de Pirituba, em São Paulo, no Brasil. Aos 11 anos, em 2009, veio com a mãe para Almada, em busca de um futuro melhor. “Em Portugal ofereciam-me uma vida mais segura, estável, longe dos problemas de droga e violência que eram tão comuns onde vivia”, diz. Agora, volvidos 15 anos, é na cidade da Margem Sul que se sente em casa e da qual não se vê partir.
Quando atravessou o Atlântico e aterrou em Portugal, não tardou a encontrar forma de continuar a combater. “Fiz taekwondo durante dois anos e pensava: porquê usar apenas as pernas, se também posso usar as mãos? Sempre gostei de bater, em geral. Acabei por sair”, conta. No ano seguinte encontrou o kickboxing e o muai thai e as nódoas negras passaram a ser recorrentes.
“Havia alturas em que aparecia com um olho negro e as professoras até me chamavam à parte para perguntar se estava tudo bem, ou se tinha algum problema que quisesse desabafar.”
Os amigos não percebiam a paixão, mas gostavam desta faceta de Jacqueline e sempre a apoiaram. No entanto, o grande esforço veio da sua parte. “Era a única miúda no meio de 20 homens e só queria ser considerada como igual. Treinava sempre com eles e dedicava-me mesmo muito”, diz. Os resultados chegaram. Sagrou-se campeã nacional de muai thai em 2016 e ibérica em 2018. Em seis anos, entre 2012 e 2018, teve “25 combates e 25 vitórias”, conta. Em 2018 mudou para o MMA.
O seu esforço, porém, não era canalizado apenas para os ringues. “Trabalhei em restaurantes, na reposição do Ikea e depois tirei uma formação de personal trainer.” O objetivo era sempre o mesmo: conseguir conciliar uma profissão “normal” com os treinos.
Com o primeiro dinheiro que juntou, foi para um “camping”, em Los Angeles, nos EUA. “Era uma oportunidade incrível. Ali podia treinar com outras mulheres que estão a chegar ao UFC. Duas horas de treino, uma hora de ginásio e mais uma hora de jiu-jitsu. Ao todo eram cinco horas quase todos os dias para aumentar a resistência e técnica. Dali saem máquinas”, refere. Entretanto, já fez dois — o último, foi quando recebeu a tão esperada chamada para a UFC.
A entrada na “liga dos campeões”
A 4 de agosto, Jacqueline estava em Los Angeles para participar noutro bootcamp e apoiar uma amiga que se preparava para competir, quando recebeu a chamada que lhe mudou a vida. “Queriam que fizesse o primeiro combate no início de setembro. Sabia que era uma grande oportunidade e lutei com unhas e dentes”, recorda.
O único problema era o peso. “Tinha de perder 14 quilos em cinco semanas para estar dentro da categoria ‘Peso Galo’ (menos de 61,2 quilos). “Não sabia se quer se ia conseguir, porque nunca tinha tentado perder tanto peso, mas decidi tentar”, revela. A partir daí focou-se e decidiu começar “uma dieta restrita” e “apertar nos treinos”.
Embora possa parecer assustador para os comuns mortais, para os lutadores como Jacqueline, é algo “normal”. “Passámos muito tempo a treinar, por isso, não é assim tão difícil. Só temos de ter mais cuidado com o que comemos e também com o descanso”, explica a atleta.
“As grandes diferenças estão nas quantidades, o que como não muda muito”, refere. O dia alimentar começa pela hora de almoço, após o primeiro treine. “Como arroz, ou batata, acompanhado com proteína e muitos legumes. Depois dos segundo treino tomo o shaker de proteína, e como aveia com frutos vermelhos. Ao jantar, que normalmente coincide com o final do terceiro treino, opto apenas pela proteína, geralmente peixe, com salada”, descreve. A isto soma ainda os suplementos recomendados pelo nutricionista que a acompanha.
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Seguiu o plano e na semana da prova ainda tinha de perder quatro quilos. O profissional que acompanha a atleta “acertou, novamente, as quantidades”, mas no dia anterior ao combate ainda estava com dois aquilo acima do estabelecido para participar. “Tive de colocar o fato de sauna e treinar. Quando me pesei já tinha conseguido chegar aos 63,5 quilos, o peso combinado para este combate”, conta, para explicar o processo.
Com tudo alinhado, entrou em campo e só se lembra de sentir um ambiente “infernal”. O público assobiava e gritava pela adversária de Jacqueline, mas isso só a motivou. “Adoro combater fora de casa, porque me dá outra força para vencer. No final, quando ganhar ao favorito, terão de me aplaudir.”
Exatamente o que aconteceu no passado dia 4 de setembro. Após três rondas, com vários pontapés nas pernas da adversária e um jogo de golpes, a atleta portuguesa venceu o seu primeiro combate na UFC. “Foi incrível. O esforço e a dedicação compensam e eu estou a trabalhar há 11 anos para isto.”
Carregue na galeria para ver alguns dos momentos de Jacqueline nesta vida de “lutas”.