“Finalmente, falou-se de ginástica em Portugal.” O desabafo de Filipa Martins contrasta com o feito que conquistou nos Jogos Olímpicos Paris 2024. A atleta de 28 anos, fez a melhor marca portuguesa de sempre da modalidade na final all around da competição. O triunfo histórico aconteceu a 1 de agosto, na Arena Bercy.
A ginasta natural do Porto admite que o salto sobre o cavalo foi o exercício mais difícil, mas também o que considera como o melhor. “Possui uma elevada componente física e mental devido à sua grande dificuldade em comparação com outros movimentos, e ainda arriscámos na técnica.” O júri atribuiu-lhe uma pontuação de 14.133.
Competir ao lado de estrelas da ginástica artística como Simone Biles e Rebeca Andrade motiva-a ainda mais. “Nunca é uma competição contra elas, mas sim com elas. Estamos ali para demonstrar o nosso trabalho, e é sempre gratificante ter esses exemplos presentes. O apoio do público também contribui para criar um ambiente incrível”, enfatiza.
A decisão de apostar no salto Yurchenko, que treina desde 2014, foi bem ponderada. “Já o faço há bastante tempo e, nas últimas sessões de treino, tudo correu muito bem. Como estava numa boa condição física, resolvi arriscar e reservei-o para os Jogos, pois, sendo um movimento diferente e arriscado, sabia que poderia obter uma vantagem.” Este salto consiste numa rodada com flic (movimento para trás com pino) sobre a mesa, seguido de um mortal e duas piruetas.
Classificado como o mais difícil segundo o código de pontuação feminino da Federação Internacional de Ginástica, o salto ganhou o nome de Natalia Yurchenko, a primeira mulher a realizá-lo, em 1982, durante uma competição nacional na antiga União Soviética. Volvidas quatro décadas, em outubro de 2023, Simone Biles, a atual detentora da medalha de ouro, repetiu a façanha durante o Campeonato do Mundo.
“Estar entre as melhores ginastas dos Jogos Olímpicos foi um sonho tornado realidade e um objetivo alcançado. Não esperava chegar a esse patamar e fiquei extremamente feliz.” Filipa considera que a sua performance foi a melhor da sua carreira. “Correu tudo muito bem. O nível de dificuldade e precisão foi elevado, e estou muito satisfeita com tudo o que consegui realizar.”
O carinho que recebeu durante a estadia na aldeia olímpica surpreendeu-a. “Não estava à espera de tanto apoio. Quando cheguei ao aeroporto, percebi ainda mais a grandiosidade de tudo o que tinha alcançado”, destaca.
A ginástica faz parte da sua vida desde os quatro anos. Começou a competir em provas nacionais aos dez, apaixonando-se pela adrenalina e pela sensação das competições, o que a motivou a continuar. “Comecei a sonhar com os Jogos em 2010, aos 15 anos, quando participei no meu primeiro Campeonato da Europa.” Até agora, já competiu em 13 dessas competições, além de oito Campeonatos do Mundo, duas Universíadas e três edições dos Jogos Olímpicos.
O seu objetivo é sempre evoluir, mas as lesões nos pés têm dificultado esse processo. “Isso é sempre o mais complicado; desmotiva-me bastante porque não consigo treinar e dar o meu melhor.” A primeira lesão ocorreu em 2011, levando-a a uma cirurgia no tornozelo esquerdo. Atualmente, já foi submetida a cinco intervenções cirúrgicas, e as ligaduras que utiliza durante os treinos ajudam a aliviar a dor.
A fase de qualificação para os Jogos de Paris não foi fácil. “O ano passado foi bastante difícil em termos de lesões nos pés e na anca. Precisava de me qualificar em outubro, mas o meu corpo não correspondia, e fui forçada a reduzir os treinos e aumentar as sessões de fisioterapia.”
Durante esse período, Filipa teve de preparar-se mentalmente para a possibilidade de não conseguir comparecer e aceitar essa realidade. “Foi muito duro porque não estou habituada a falhar. Houve muito sacrifício, mas no final fiquei muito feliz.“
Nesses momentos complicados, vai buscar força às pessoas que lhe são mais próximas. “Agarro-me muito à minha família, namorado e amigos. Não sou uma pessoa negativa, sei que tudo leva o seu tempo, por isso, deixo fluir e na hora certa a motivação volta.” O companheiro, Nelson Araújo, de 30 anos, com quem mantém uma relação discreta, é treinador de ginástica acrobática no Acro Clube da Maia, local onde a portuense treina.
Conciliar estudos com o desporto tem sido um desafio. “A minha prioridade sempre foi a ginástica porque sei que preciso de apoio quando deixar de competir. Em 2022, não consegui qualificar-me para o Campeonato do Mundo, e aproveitei esse tempo para me inscrever no mestrado.” Atualmente, encontra-se no segundo ano do curso de Treino Desportivo — Treino de Alto Rendimento e Treino de Jovens na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto.
“Tenho duas grandes inspirações: a atleta norte-americana Dominique Moceanu tem uma felicidade em competir que me encanta, e a portuguesa Zoi Lima, cujos passos gosto de seguir.”
Os planos de Filipa para os próximos tempos passam pelos estudos. “Agora vou de férias e quero descansar tanto o corpo como a mente. O próximo objetivo é finalizar o mestrado e, depois, tomarei decisões sobre o meu futuro.”
Treino e alimentação
O Acro Clube da Maia é onde Filipa se prepara fisicamente. “De manhã, faço fisioterapia e, por vezes, acupuntura durante a hora de almoço, pois isso ajuda as minhas articulações. Às 17 horas, treino com o meu grupo, composto por sete raparigas de várias idades.”
Diariamente, de segunda a sábado, Filipa dedica três horas e meia à ginástica. Os seus treinos incluem movimentos que utilizam apenas o peso do corpo e também aparelhos de ginástica.
Relativamente à alimentação, sempre esteve centrada em opções simples. “Como de tudo, mas procuro alimentos que me proporcionam energia e força para os treinos.”
A base da sua dieta inclui proteínas e hidratos de carbono, assim como uma variedade de legumes e frutas frescas. Antes das provas, não dispensa um bom prato de massa com bifes de frango ou peru, além de suplementação recomendada por um profissional, como vitaminas, ferro e magnésio.