A menstruação não é brilhante, azul, rosa, verde nem nenhuma das outras cores com que já foi retratado em anúncios de pensos higiénicos e tampões. Hoje, algumas marcas já usam um líquido vermelho (vitória!), mas o trabalho de literacia menstrual está longe de estar terminado: “Há muito por fazer”, diz Patrícia Lemos, instrutora de planeamento familiar natural.
Patrícia não é médica (nem nunca quis ser), mas trabalha “em sinergia” com profissionais de saúde. Criou o projeto Círculo Perfeito para ajudar mulheres e casais através de um planeamento familiar natural que, esclarece, nada tem que ver com luas, celebrações nem rituais: é simplesmente promover a educação do ciclo menstrual.
Há 15 anos começou a trabalhar com casais em tratamentos de fertilidade. O interesse pela área surgiu do “encanto por aquilo que a tecnologia pode disponibilizar ao serviço da medicina. Podemos ajudar casais, que não têm como fazer bebés, a fazer bebés”, refere. “Estas pessoas sentiam que a vida lhes tinha puxado o tapete e quis disponibilizar-me para lhes dar algum acolhimento, consolo e informação”, diz.
Informação é, aliás, a palavra-chave que Patrícia repete várias vezes ao longo da conversa com a NiT. Os casais que acompanhava sabiam tudo sobre “fármacos e procedimentos”, mas pouco sobre o ciclo menstrual. Muitas vezes estavam “perdidos nos próprios processos”. Assim, decidiu criar um um blogue, em 2010, com um nome “chato e complicado”, como descreve. Chamava-se Plataforma de Educação da Saúde Menstrual e Feminina e funcionava como “um espaço para dar informação de base científica sobre menstruação e fertilidade aos clientes”.
Com o tempo, tanto o formato como o nome ficaram obsoletos e o projeto transformou-se no que é hoje: Círculo Perfeito — Anos Férteis. A informação passou a ser partilhada num site próprio e através da página de Instagram , que Patrícia recheia com artigos e conteúdos sobre estes temas. Tem hoje quase 100 mil seguidores (93 mil, neste momento).
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Patrícia Lemos, de 48 anos, faz “um bocadinho de tudo”. Dá sessões individuais e de casal, umas para gerir a fertilidade de forma a não engravidar e outras em que o objetivo é precisamente o contrário. Neste momento, as vagas para primeiras sessões estão esgotadas, mas vão abrir novos horários em julho.
A experiência prática de vários anos está a par das formações que tirou. É mestre em Sociedade, Risco e Saúde pelo ISCSP (da Universidade Técnica de Lisboa) com uma tese feita na área das questões da infertilidade, “diplomada pela London College em Hipnose Clínica e [tem] uma especialização no acompanhamento a casais em procriação medicamente assistida”. É também membro da Society for Menstrual Cycle Research.
A profissional organiza ainda webinars e palestras para empresas e autarquias, vai a escolas dar formação e “atualizar professores de ciências e pessoas que dão apoio na área da saúde escolar”, ou conversar com jovens sobre o período. Aos sábados, muitas vezes, dá workshops. “O Círculo Perfeito compõe-se dessas variáveis todas”, explica.
Ao longo dos anos, com tantas conversas, histórias e partilhas, Patrícia foi fazendo uma auscultação do estado da literacia menstrual no país. Apercebe-se de melhorias, claro, mas ainda vê muita confusão e desconhecimento de conceitos. Médicos de família e ginecologistas com quem fala, dizem-lhe que há pacientes que não sabem identificar onde têm comichão ou dor, não conhecem o corpo porque têm “vergonha”.
Na adolescência, por exemplo, falta passar a ideia de que a “questão reprodutiva é partilhada” e não da exclusiva responsabilidade das raparigas. “Ainda damos o benefício: tomas a pílula e já nem tens de te preocupar com os ciclos irregulares” — é aprendido desde muito cedo como um dois em um “muito apelativo”. O que acontece é que acaba por se “pôr de parte tudo o que é informação que o ciclo menstrual nos pode dar, se há problemas de tiroide, por exemplo”. E só mais tarde, se se quiser deixar a contraceção hormonal, haverá um confronto com estas questões.
Há um atraso na chegada de informação, que devia ser ensinada nos primeiros anos de adolescência. “Se calhar vão fazer exatamente as mesmas escolhas e está tudo bem, mas com uma consciência distinta”, explica.
“Vivemos num País que chama menstruação a tudo o que é sangue e sai da vagina. E chama-se corrimento a tudo o que sai da vagina e não é sangue”. O que é preciso fazer, garante, é “começar a chamar as coisas pelos nomes”. Ter o período “em Lisboa ou no Porto é diferente de menstruar no interior do país”.
Também há “desajustes” relativos ao contexto e classe das pessoas que menstruam e são, muitas vezes, os médicos de família “que vão ajudar a mudar o paradigma da literacia menstrual”, diz. “Porque é nos centros de saúde que acontecem as consultas de planeamento familiar, esta coisa mágica que o nosso País oferece”, sublinha, referindo que são essenciais.
Mais de 300 casais com uma gravidez bem-sucedida
As consultas são uma grande fatia do trabalho de Patrícia. Nas de casal não há um perfil de cliente concreto. “Os mais jovens têm cerca de 25 anos; quanto aos mais crescidos, os homens vão até aos 50 e tal e as mulheres, no máximo, 45, 46 anos”. Pode ser marcadas através do site oficial do projeto Círculo Perfeito.
Há quem já tenha tentado tratamentos de fertilidade e chegue à consulta tranquilo, outros muitos frustrados e ansiosos. De forma geral, os casais mais jovens marcam consulta preventivamente. “Dizem: ‘Quero deixar a pílula, queremos tentar engravidar, vamos casar em setembro e queremos saber tudo”.
As histórias são muito diferentes, diz Patrícia. Desde 2020, cerca de 350 casais tiveram uma gravidez bem sucedida. Desde janeiro deste ano, já conta 25 casos positivos.
As consultas têm, normalmente, uma duração de 1h15. Na primeira, faz-se um levantamento do historial clínico e pessoal dos casais; depois, é analisado o espermograma e o ciclo menstrual. “Muitas vezes chegam aqui já muito frustrados, muito cansados, e o sexo é quase uma tarefa entre chegar do trabalho e jantar”. É importante identificar a janela fértil, perceber quando é que há ovulação e explicar tudo de forma a que o casal seja “independente”.
Patrícia fala com os casais sobre “as probabilidades em termos de evidência científica” e daquilo que podem esperar “para que decidam se querem ser encaminhados para medicina reprodutiva ou se querem fazer o processo por aqui”, refere. “Há cada vez mais mulheres a chegarem com condições de saúde, desde doenças autoimunes, inflamatórias, problemas de tiroide, dietas muito agressivas ou níveis de ansiedade tremendos”. Tudo isso “acaba por afetar o quadro geral”, assume.
Para monitorizar o ciclo menstrual, Patrícia recomenda, de forma geral, que as clientes usem o método natural de fertilidade (MNF). O método do calendário, que divide o ciclo a meio para detetar ovulação e que a maioria das aplicações utiliza, não é recomendado: não só é pouco fiável como “já foi cientificamente desacreditado”.
O MNF baseia-se em três fatores primários: a temperatura do corpo, o muco vaginal e o colo do útero, que devem ser observados todos os dias. Um padrão de subida térmica sustentada por três dias é indicadora de que a ovulação já terá ocorrido. O muco “clara de ovo” é sinal de fertilidade e quando o colo do útero está mais alto, macio e aberto é sinal de aproximação da ovulação.
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Os fatores são depois combinados num gráfico que forma um retrato do ciclo menstrual e torna simples perceber em que dia ocorreu a ovulação. Apesar de, no seu uso perfeito, ter uma taxa de eficácia de 99 por cento, uma utilização típica é menos eficaz — a taxa desce para os 70 e poucos por cento. Também por isso é relevante ter acompanhamento, para que a curva de aprendizagem seja mais rápida.
Entre as centenas de casais que acompanhou nos últimos anos, há uma história que Patrícia Lemos recorda com particular carinho. Uma mulher, paciente oncológica, marcou consulta e disse que os médicos lhe tinham dado seis meses para engravidar — tinha um mioma de 20 centímetros na barriga.
O marido trabalhava fora, o que dificultava ainda mais o processo, e quando Patrícia lhe disse que “seria muito difícil”, a cliente respondeu: “Não faz mal, eu tenho seis meses”. O otimismo desarmou a instrutora de planeamento familiar natural. A verdade é que houve um teste positivo e, apesar de ter sido uma gravidez com dor, o bebé nasceu em plena pandemia e “já crescido”.
“Eu costumo dizer que nós sabemos alguma coisa sobre fertilidade, mais ainda há muito por descobrir — temos de haver espaço para nos deixarmos maravilhar com estas histórias”, conclui Patrícia.