Aos 33 anos, Célia Santos nunca imaginou que, depois de ultrapassar uma árdua luta contra um cancro, se veria novamente a perguntar: porquê a mim? Diagnosticada com um tumor no cérebro aos 17 anos, viveu com ele sem nenhum tratamento até aos 21, altura em que a doença a obrigou mesmo a combater a doença. Fez quimioterapia, venceu a batalha e a pequena massa mantém-se assim, pequena e estável, como se quer. A vitória permitiu-lhe fazer algo com que há muito sonhava: libertar-se do isolamento da doença, viver a vida e ser independente.
Infelizmente, Célia viu-se encurralada num labirinto burocrático onde encontrou várias dezenas de casos como o seu: sobreviventes de doenças oncológicas incapazes de contrair um empréstimo para a compra de casa. É que esta operação exige um seguro de vida que, como vieram a perceber na primeira pessoa, as seguradoras se recusam a assinar.
Quando a resposta não é a recusa total, as propostas são inaceitáveis: houve até quem propusesse a Célia um seguro de vida com um agravamento de 200 por cento.
O cenário de injustiça para com doentes oncológicos já considerados curados ou estáveis já foi resolvido em alguns países europeus — França, Luxemburgo, Holanda ou Bélgica —, pioneiros naquilo a que chamam o “direito do esquecimento”. Por cá, o Partido Socialista deu, a 19 de fevereiro, o primeiro passo para fazer as alterações legislativas necessárias de forma a permitir que dezenas e centenas de sobreviventes possam ser portugueses de pleno direito.
O projeto de lei 691/XIV/2.ª procura, portanto, reforçar “a proteção da pessoa segurada, proibindo práticas discriminatórias, melhorando o acesso ao crédito e contratos de seguros por pessoas que tenham superado riscos agravados de saúde, consagrando o ‘direito ao esquecimento‘”.
“Estas práticas são particularmente visíveis no acesso ao crédito, em especial ao crédito à habitação, e a contratos de seguros, com implicações especialmente relevantes no desenvolvimento pessoal e na efetivação de direitos como o direito à habitação por parte destes cidadãos”, pode ler-se no documento apresentado pelo Grupo Parlamentar do PS.
O caso de Célia Santos é o exemplo perfeito da discriminação que ainda hoje vigora — e que impede centenas de portugueses de exercerem os seus direitos. A NiT recolheu o testemunho desta sobrevivente, que conta a sua experiência na primeira pessoa. Leia o seu texto.
A história da luta e da revolta de Célia
Há coisas que não se esquecem. Uma delas é o momento em que um médico nos diz que temos poucos meses de vida. As fortes e insuportáveis dores de cabeça eram, afinal, o sinal de que tinha uma massa no cérebro, um cancro. Uma notícia que é um abalo para qualquer pessoa, quanto mais para uma rapariga de 17 anos. Felizmente, o cenário era menos grave.
Depois de vários exames, verificou-se que era um erro de diagnóstico. A massa, essa continuava lá, embora menos grave do que se pensava inicialmente. Ainda pequena e inoperável, decidiu-se que ficaria em vigilância constante. Apesar do alívio, a pergunta que fazia era quase sempre a mesma: porquê a mim?
O apoio, esse vinha de todo o lado: da família, dos professores, dos colegas de turma e amigos. Apesar de algum isolamento natural — procurei sempre guardar algumas coisas para mim, não preocupar os outros —, a vida decorreu com a normalidade possível. Sentia por vezes a necessidade de falar com quem estivesse a passar por uma realidade semelhante (partilhar o que sentia a quem me pudesse entender melhor).
Habituei-me rapidamente aos exames regulares, mas nunca ao momento da revelação. Naquele momento de pausa, falta sempre um pouco de ar. Infelizmente, em 2008, quatro anos depois do diagnóstico, chegava a má notícia: a massa crescia e era preciso pará-la. Um balde de água fria. Foi muito difícil de aceitar.
O que veio a seguir foi uma das coisas mais difíceis que fiz na minha vida. A começar um estágio, o primeiro emprego, decidi que não iria recuar. Os tratamentos eram feitos à sexta-feira, para recuperar no fim de semana — para que pudesse estar preparada para mais uma semana de trabalho.
O tratamento foi doloroso, as minhas veias frágeis aumentavam o meu sofrimento sempre que tinha que ser picada mais do que uma vez. E, apesar de também ter provocado uma reação adversa, foi bem sucedido. A massa tinha recuado e era altura de sonhar: com a independência financeira e pessoal; com o trabalho; com a vida.
De forma gradual, libertei-me do isolamento em que vivia, apesar de ser uma pessoa mais recatada. Vivi sempre na casa dos meus pais e agora, livre dos tratamentos, já com 28 anos, queria concretizar esse sonho de ter uma casa.
Nunca, até essa altura, me tinha sentido suficientemente forte para sair de casa. Sentia-me confortável com o apoio da família. A doença forçou-me a, de certa forma, adiar a vida. Não vivi determinadas coisas, não aproveitei como os outros jovens adultos. E, de repente, com uma boa notícia do médico, sentia-me capaz de dar esse passo.
Encontrei-a em Lisboa, a casa dos meus sonhos, que me levaria para perto do trabalho, para a cidade onde poderia aproveitar a vida de outra maneira. Nunca me passou pela cabeça que não pudesse concretizar esse sonho por causa do cancro que tinha vencido.
Disse logo que queria ficar com a casa, avançámos com as papeladas e assinou-se um contrato promessa. No banco, também não surgiram entraves. O sinal foi pago, os documentos preenchidos. Mas da seguradora veio uma má notícia: o seguro de vida, obrigatório em qualquer crédito para habitação, tinha sido recusado.
Sem esmorecer, voltei a tentar outro banco e outra seguradora. E outra. No final da maratona, foram mais de dez as que contactei, quase sempre com a mesma resposta: um redondo não. Umas, alegavam o risco excessivo de segurar alguém com um historial oncológico — com riscos de morte de 300%, diziam-me —, outras acenavam com valores irreais.
O sonho estava cada vez mais longe. O otimismo começava a não resistir. Começava a entrar em desespero. Porque é que me fazem isto se eu estou bem de saúde?
Sem seguro e sem empréstimo, não era possível avançar com a compra da casa. Mas também aí surgiu um problema: o dinheiro que tinha poupado e avançado como sinal, não seria devolvido — num caso que está ainda por resolver.
O não da seguradora virou a vida do avesso. E essa é uma decisão injusta, uma situação que precisa de ser corrigida. As exigências dos bancos e os procedimentos das seguradoras carecem de uma alteração normativa.
A recusa era incompreensível. Eu tinha um relatório médico que declarava que tinha uma situação clínica estável. Houve quem me dissesse para mentir às seguradoras, a omitir o meu historial. Disse sempre que não. Sou verdadeira e, apesar de injusto, não vou mentir. Tenho que dizer a verdade.
Nunca fui discriminada. Felizmente, tive sempre um grande apoio das pessoas com quem lidei, na escola, na faculdade, no trabalho. Nunca aconteceu, até ter a ousadia de querer concretizar um sonho e fazer o que tantos outros portugueses podem: comprar uma casa.
É também por isto que é necessária uma mudança na lei — e que começou a 19 de fevereiro com a apresentação do novo projeto de lei do PS que quer instituir o direito ao esquecimento, para que pessoas na minha situação possam não lhes ver negado o direito de comprar uma casa, de fazer um seguro de vida, de serem felizes.
Se existe em países como a França, Bélgica ou Holanda, não vejo porque não poderemos abrir essa possibilidade em Portugal. Não pedimos muito. Não peço muito. Só quero ser capaz de fazer o que qualquer outro português pode fazer, alguns eventualmente menos saudáveis do que eu, que tenho um relatório clínico e que sou acompanhada regularmente. O que temos hoje, não faz sentido. Não perco a esperança, acredito que é possível melhorar a vida de muitas pessoas. Será um dever cumprido.