Saúde

“Mãe, posso pão?” Afinal, porque é que os miúdos estão a comer os verbos?

A geração Alpha já não faz perguntas completas, e levam os pais ao desespero. E não é uma "moda", mas algo mais sério.
Pode ter consequências a longo prazo.

Papá, mamã, pópó ou papa. Todos os recém-pais partilham uma ansiedade comum: quando ouvirão as primeiras palavras dos seus filhos. Habitualmente, os bebés começam a articular palavras por volta dos nove meses, unindo sons simples como “mama”, “papa”, “baba” ou “dada”.

Após estas primeiras sílabas repetidas, só começam a soletrar palavras propriamente ditas por volta dos 12 meses, momento em que começam a associar as palavras a objetos ou ações.

A formação de frases surge entre os 18 e os 24 meses, mas as primeiras construções frásicas tendem a ser versões simplificadas das expressões dos adultos, geralmente compostas apenas por substantivos e verbos. Embora estas primeiras frases sejam muitas vezes divertidas — frequentemente com palavras pronunciadas de forma incorreta ou “à bebé”, como “xopa” em vez de “sopa” — é fundamental corrigi-las.

Se é certo que um miúdo que diz “papa” quando quer comer ou “pópó” quando anda de carro encanta os adultos à sua volta, a falta de vocabulário pode, com o tempo, tornar-se uma preocupação.

A linguagem é um elemento crucial do desenvolvimento cognitivo dos mais novos, e é um aspeto que deve ser monitorizado com atenção. Nos últimos anos, os mais pequenos têm mostrado uma tendência para “comer” palavras, sobretudo os verbos que ligam as frases. Este padrão foi identificado por Alfredo Leite, formador de educadores e pais, que tem promovido iniciativas para alertar para este fenómeno, procurando encontrar soluções. 

 
 
 
 
 
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Alfredo, que estudou psicologia e construiu a sua carreira nessa área, trabalhou em empresas ligadas à educação antes de fundar o seu próprio projeto: a “Mundo Brilhante Desenvolvimento de Competências”, que se dedica ao aperfeiçoamento das capacidades socioemocionais. Aos 48 anos, percorre as escolas do País para ajudar a melhorar as realidades que encontra.

“Realizo ações de formação para pais, educadores e alunos. Nos últimos anos, ouvi muitas pessoas a repetirem que os mais novos ‘comem’ palavras. Decidi investigar o fenómeno e comecei a discutir o assunto”, explica à NiT.

Segundo o formador, esta tendência é mais predominante entre miúdos da geração Alpha (nascidos a partir de 2010, na sua grande maioria, filhos da geração Millennial) e as suas consequências não se limitam apenas a alterações na linguagem.

O que está em causa

A longo prazo, a falta de vocabulário pode impactar a cognição e a estruturação do pensamento. “Quando a linguagem é pobre, o pensamento também será”, afirma. Miúdos que se sentem inseguros a falar podem desenvolver dificuldades de comunicação, o que irá prejudicar as suas relações pessoais.

Importa salientar que não se trata de uma incapacidade de aprendizagem ou de preguiça, mas uma forma consciente de expressão. Na verdade, a redução das frases pode criar a falsa sensação de que a comunicação é mais rápida quanto menos palavras forem utilizadas.

Entre as causas, Alfredo aponta a falta de tempo de qualidade passado com os mais pequenos, a escassez de conversas, falta de hábitos de leitura e de contar histórias, e a simplificação dos diálogos entre pais e filhos. Além disso, a influência das redes sociais e de fatores externos ao núcleo familiar, também desempenham um papel importante. Estes dois fatores nem sempre são previsíveis, nem controláveis, mas afetam o desenvolvimento da linguagem e até o próprio desenvolvimento global dos miúdos.

Qual a solução?

Alfredo enfatiza que é essencial compreender que este não é um problema com uma única causa ou que afete apenas determinados grupos. “É um problema conjuntural, resultante do estilo de vida que levamos”, esclarece.

As evidências da transversalidade deste fenómeno não surgem apenas das suas investigações no âmbito profissional, mas também da sua experiência pessoal com a filha mais nova, de 10 anos, que costumava dizer ‘Mãe, posso pão?'”. Essa expressão tornou-se uma chave para a ação de consciencialização que procura promover, seja em plataformas online ou formações presenciais.

A resolução do problema começa por reconhecer a sua existência e tomar medidas para o contrariar, defende Alfredo. “Os professores devem incentivar os miúdos a refletir e aprofundar as questões, mesmo as mais simples. Os pais devem conversar mais com os filhos, ouvi-los, corrigi-los de forma positiva e construtiva, e brincar com as palavras. Acima de tudo, devemos ser um exemplo”, recomenda.

Se os adultos têm vícios de linguagem que os miúdos não identificam como tal, vão adotá-los como corretos. Por isso, Alfredo trabalha com os adultos para que estes identifiquem o problema e possam intervir de forma eficaz junto dos mais novos. Os temas abordados nas suas formações, workshops e palestras enfatizam a importância das palavras no desenvolvimento do pensamento e da autonomia, divididos em dois programas distintos: um focado nos pais e outro nos professores.

A linguagem não é só uma ferramenta para comunicar, é a estrutura com que o nosso raciocínio se desenvolve“, sublinha. A forma como falamos não reflete apenas a nossa capacidade de expressão, mas também de organização e reflexão”, conclui.

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