Exaustos. É assim que os profissionais de saúde portugueses se encontram. Alguns, inclusive, dizem que não sabem se querem continuar a exercer quando tudo isto passar. Outros relatam que não querem palmas à varanda, apenas que toda a gente fique em casa sempre que possível. Porém, as imagens que se têm visto são ruas cheias, festas privadas e exceções ao confinamento que muitos não compreendem.
Com hospitais à beira da rutura, ambulâncias e pacientes durante horas à espera de uma vaga e uma sociedade que parece dividida em dois — aqueles que compreendem a gravidade da situação e os que preferem ignorá-la —, os testemunhos e desabafos de médicos, enfermeiros e auxiliares multiplicaram-se no primeiro fim de semana de confinamento.
A criadora de conteúdos digitais Alice Trewinnard, por exemplo, fez uma compilação de algumas mensagens que lhe chegaram, e que agora somam mais de 50 mil gostos e centenas de partilhas.
“Sou enfermeira e só tenho a dizer que isto está totalmente descontrolado! Não há equipamento, não há comunicação de resultado de testes, não há capacidade das autoridades! Os profissionais de saúde estão todos os dias a colocar a sua vida em risco. Onde trabalho não temos equipamento suficiente, muitas vezes temos que ficar oito horas equipados com a cara com feridas, suados, sem beber água nem comer, sem urinar. Totalmente desumano. E o governo não quer assumir o que se está a passar! Por favor, fiquem em casa”, apela uma profissional de saúde portuguesa.
Uma médica de um hospital de Lisboa desabafa que faz urgência na área de respiratórios que, neste momento, é um desespero. “50 doentes internados no SO… Cerca de 20 ventiladores em SO (não há mais ventiladores) e tem de se ponderar remover ventilador a quem não está a recuperar, para dar oportunidade a outra pessoas (…) É desesperante isto tudo, sermos três médicos de cada vez para tantos doentes, e sinto vontade de chorar a cada dez minutos que lá estou.”
Outro dos testemunhos que Alice partilhou chegou-lhe de um outro ponto de vista, a filha de uma profissional de saúde: “Hoje, a minha mãe chegou a casa, e disse-me ‘queria dar-te um abraço. Hoje tive de escolher ventilar uma menina de 27 anos ou um senhor de 73’. Não quis saber o que aconteceu. Mas quis muito abraçar a minha mãe naquele momento. Em vez disso, aqueci-lhe uma sopa, deixei em cima da mesa da cozinha, baixei a máscara, mandei-lhe um beijinho e voltei para o quarto para ela poder comer tranquila na cozinha.”
Os desabafos continuam nesta publicação, desde aqueles que fazem questão de dizer que os profissionais de saúde mereciam mais gratidão por parte de todos, sob a forma de cumprirmos o confinamento o máximo possível, aos que fazem saber que chegámos este mês “ a um cenário de guerra”.
“Sinto vontade de chorar a cada dez minutos quando lá estou”
“Isto assim não vai parar. Nós estamos exaustos, mas continuamos a lutar seis dias por semana e a dormir o sétimo quase todo, tal é o cansaço. Por favor, fiquem em casa (não foi uma frase da moda só em março, agora tem de voltar a ser”, escreve uma enfermeira.
É também denunciado que não há espaço para colocar mais doentes, que há milhares de profissionais a trabalhar 100 horas por semana, em burnout, e que há quem tem visto a família quatro dias desde que a pandemia começou há cerca de um ano. “Tenham noção, deixem de ser egoístas”, pode ler-se.
Mariana Soares Branco, uma médica portuguesa em Espanha, também aproveitou a sua visibilidade no Instagram para partilhar o testemunho de vários profissionais de saúde.
“Sou interna de Saúde Pública e na minha unidade há cerca de 90 dias que ninguém descansa. E sim, isto inclui o dia de Natal, o dia de Ano Novo”, todos os dias, das 9h da manhã até horas impróprias para trabalhar (…) Perdemos diariamente a motivação quando, ao realizar inquéritos, percebemos que não houve o mínimo de cuidado em relação ao contacto com outros. Mas no dia seguinte estamos lá de novo, sempre com a esperança de que o nosso telefonema salve vidas”, diz uma das partilhas.
Uma técnica de radiologia revela que é “humanamente impossível chegar a toda a gente, não há espaço para colocar tanta maca, tanta cadeira, tanta pessoa”. E vai mais longe, revelando que a urgência é, neste momento, um verdadeiro campo de batalha. “Sinto vontade de chorar a cada dez minutos quando lá estou.”
Outro testemunho chega de uma médica de Coimbra que, além de denunciar a falta de material adequado para maior proteção de todos os profissionais da área da saúde, conta que já não tem coragem de enfrentar alguns doentes olhos nos olhos por sentir que está a desistir deles. “Desistimos de vidas humanas com muitos dias e anos pela frente porque não há capacidade para tratar toda a gente (COVID e não COVID). É muito triste.”
Outra profissional de saúde assume que a realidade é triste e que na última semana começaram a “decidir quem morrer e quem vive”. “Não há vagas em lado nenhum. Os doentes morrem sozinhos. Mais do que ventiladores precisamos de espaço e pessoas para trabalhar. Entrar num serviço covid e circular na rua são dois mundos paralelos”, escreve. “Depois disto tudo passar, não sei se quero mais ser enfermeira. Porque não sabíamos ao que vínhamos”, termina.
Há profissionais que utilizam as próprias redes sociais para relatarem o que estão a passar. É o caso de Cristiana Ferradaz que, enquanto interna de anestesia no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, tem como função entubar doentes. “É estar no limiar entre a vida e a morte. Entre o estado de consciência e o de coma. Ninguém imagina o quão exigente isto se torna até aqui estar”, escreveu a 18 de janeiro.
“Acreditar que quase por artes mágicas tínhamos evitado uma catástrofe igual à de países vizinhos não trouxe esperança”
E continua: “Como otimista que sou, nunca imaginei que os hospitais chegassem a este ponto de ruptura. Acreditem. Enfermarias sem vagas, cuidados intensivos sem vagas, internos de especialidade a serem mobilizados e a verem o seu internato comprometido, doentes oncológicos, doentes com AVCs, com enfartes a verem os seus tratamentos não serem respondidos em tempo óptimo, cirurgias adiadas, doentes com fraturas urgentes a serem acumulados de dia para dia… os hospitais sempre estiveram a funcionar no seu limite e, obviamente, como em tudo, quando existe uma agressão que ultrapassa esse limite, as coisas começar a cair em efeito dominó.”
Por último, Cristiana pede que os portugueses hajam em equipa. “Somos todos um só. Um só país, uma só nação, um só Mundo. Não se separem, não se ataquem, tentem, cada um, fazer o vosso melhor. Ajudem-nos a ajudar-vos.”
Podíamos partilhar muitos outros testemunhos, mas para terminar deixamos o de Sara Velha, “uma enfermeira que queria ser só mãe”. Numa publicação de 17 de janeiro, diz-nos que o “Milagre Português” foi na verdade o nosso azar.
“Acreditar que quase por artes mágicas tínhamos evitado uma catástrofe igual à de países vizinhos não trouxe esperança. Trouxe sim a muita gente, a ideia de que afinal não era assim tão grave, que afinal estávamos melhor preparados do que se dizia. Trouxe um verão em que não se acautelou a possibilidade de novas vagas, em que não se resolveram as fragilidades que se tinham sentido na primeira”, começa por dizer.
E continua: “E agora aqui estamos nós, a subir mas apenas em números porque tudo o resto está em declínio. E o que vejo a descer vertiginosamente é a capacidade das pessoas perceberem o que se passa, perceberem o que aí vem. Há uma espécie de anestesia geral, um desinteresse. Como se 500 casos tivessem o impacto de 10000, como se 160 mortos num dia só por Covid não fossem já suficientes sem somar as mortes não Covid. Como se os velhinhos que morrem não fossem os velhinhos da vida de alguém. Como se realmente morressem só velhinhos…”
Esta profissional garante que, numa altura em que muitos contavam já se terem visto livres da pandemia, estamos só a começar “um dos piores capítulos desta história”.