Há um ano e três meses que Diana Carvalho Pereira é médica interna do Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA). Em janeiro começou o internato em cirurgia, departamento onde encontrou “uma realidade chocante”.
Agora acusa um cirurgião da equipa de cometer erros médicos sucessivos e estende a acusação ao diretor do serviço por alegada conivência. Três dos casos que presenciou podem ter levado à morte dos doentes.
No início de abril a profissional de saúde, natural do Porto, apresentou queixa na Polícia Judiciária e o caso seguiu para o Ministério Público. Perante a gravidade das acusações, o hospital abriu um inquérito interno com caráter de urgência. O diretor clínico pediu também a intervenção da Ordem dos Médicos.
O bastonário Carlos Cortes, garantiu em conferência de imprensa esta terça-feira, 11 de abril, que se trata de “um assunto prioritário” e será criada uma comissão para acelerar a investigação dos casos. “Perante a especificada gravidade do que foi relatado, era importante ter uma intervenção célere, por um lado, e consequente, por outro, para assegurar os cuidados de saúde, bem como o cumprimento das práticas médicas corretas”.
A internista de 27 anos recorreu às redes sociais para expor o caso, alegando que “foi inventada uma história de insanidade mental” para a difamar. Porém, Diana Carvalho Pereira garante estar na posse plena das suas faculdades psíquicas, tendo, inclusive, um atestado médico que o comprova. A NiT falou com a profissional para perceber os contornos da situação.
Quando teve conhecimento dos casos que reportou?
No início de 2022 fiz um estágio de três meses em cirurgia no Hospital de Faro, integrado no estágio de formação geral que inclui períodos em vários serviços. Nessa altura, fui integrada numa equipa que considero que tinha boas práticas. A experiência foi de tal forma positiva que acabei por escolher cirurgia como especialidade. Entretanto, prossegui o estágio geral no centro de saúde e pedi para fazer horas extra no hospital de Faro. Queria ganhar algum dinheiro e adquirir experiência na área que gostava. Na altura, havia uma maior necessidade na equipa do cirurgião que reportei, e fui escalada para fazer urgências às terças à noite com os profissionais que reportei. Rapidamente percebi como trabalhavam e não tive uma boa experiência. Quatro semanas depois, desisti de fazer essas horas extra, porque fiquei com medo de trabalhar naquelas condições. Ao contrário do que é suposto, atendia pacientes sozinha e fazia pequenas suturas, sem acompanhamento nem ajuda. Em janeiro, quando comecei o internato de cirurgia, fui colocada, surpreendentemente, com essa mesma equipa. Cheguei a considerar se devia continuar o internato ou não, porque acredito que é algo que exige muita dedicação, com um grande peso na minha carreira. Decidi ficar e foi durante estes meses que ocorreram as situações que denunciei.
Cinco pacientes sofreram lesão corporal associada a erro médico, como castração acidental, perda de rins ou necessidade de colostomia para o resto da vida
O que sabia do médico em questão?
O Hospital de Faro, apesar de ser uma unidade que serve uma grande população, no hospital toda a gente se conhece e acaba por se falar muito de várias situações. Digo mesmo que acaba por ser uma aldeia, apesar de não o ser. E no meu ano de formação geral já tinha ouvido alguns comentários sobre o médico em questão e sobre a sua falta de profissionalismo. A ideia que tinha dele é que parecia estar a ser orientado, tal como eu. Nas cirurgias havia sempre algum especialista a dar-lhe indicações. Soube também que uma interna recusou ser orientada por ele. Tudo o que fui ouvindo acabou por me deixar mais atenta e de pé atrás.
O que fez em relação a isso?
Sendo interna de primeiro ano não tenho conhecimento profundo de nenhuma especialidade. Sei um pouco de várias. Por ter medo da conduta do orientador e por ter pouca experiência, estudava sempre os procedimentos das cirurgias programadas. Consultava os livros e os vídeos que nos disponibilizam nas plataformas para internos, com as mais diversas cirurgias. E foi aí que vi com os meus olhos que haviam coisas que não batiam certo. Vi e descobri coisas que me envergonham enquanto profissional de saúde.
Que tipo de situações a fizeram reportar o desempenho do médico?
Entre janeiro e março deste ano reportei 11 casos daquilo que considero erro e/ou negligência. Mas acredito que muitos mais poderão ter acontecido. Destes 11, três pacientes morreram e dois estão internados nos cuidados intermédios. Os outros cinco sofreram lesão corporal associada a erro médico, como castração acidental, perda de rins ou necessidade de colostomia para o resto da vida. Um dos doentes esteve uma semana com compressas esquecidas no abdómen, por exemplo.
Cheguei a um ponto em que percebi que normalizavam tudo o que se passava e deixei de confiar neles
Relatou o que viu ao diretor de cirurgia ou a outro superior hierárquico?
Não. Vi reiteradamente que estes cirurgiões, que estavam sempre presentes, não faziam nada. Cheguei a um ponto em que percebi que normalizavam tudo o que se passava e deixei de confiar neles. Por isso, comecei a pedir exames quando suspeitava de práticas clínicas indevidas. Descobri que, muitas vezes, estava correta. Reuni todas as provas necessárias e fiz queixa na Polícia Judicial no dia 1 de abril. No dia seguinte, reportei os casos à Ordem dos Médicos e à Entidade Reguladora da Saúde e à Administração Central do Sistema de Saúde (ACES) via email. Um dia depois, a 3 de abril, informei a direção clínica, a administração do hospital e a diretora do internato. No dia 4 informei o diretor de serviço. Ou seja, segui a ordem hierárquica, mas de forma inversa, porque toda a gente me dizia que, naquele hospital, as queixas internas não davam em nada.
Alguma vez falou com os pacientes ou familiares?
Sim. Nós temos uma telefonista no hospital a quem recorremos quando queremos atualizar o estado dos pacientes. Mas eu costumava pedir os contactos aos familiares, para lhes ligar diretamente, porque o serviço tinha muitas solicitações. Muitos acabaram por se queixar de alguns sintomas estranhos. Outros informei-os quando decidi fazer a queixa, porque são as verdadeiras vítimas.
Sofreu alguma retaliação?
Logo após ter feito a denúncia, o diretor do serviço fez uma queixa interna sobre a minha conduta profissional e alegou que isso teria de ser averiguado. Ou seja, em vez de se defenderem, tentaram atacar-me. Inventaram também uma história para me difamar no hospital inteiro. Alegam insanidade. Mas eu não sou, nem nunca fui acompanhada em consultas de psiquiatria. Nunca me foi diagnosticada nenhuma patologia que indique insanidade. Aliás, quando dei conhecimento da queixa e começaram a surgir essas acusações, informei-me com o meu advogado que me aconselhou a pedir uma avaliação psíquica. Foi o que fiz e o relatório atesta que estou em plenas capacidades psíquicas. No entanto, sou acompanhada por um psicólogo desde a segunda semana do internato, porque não conseguia dormir bem e desenvolvi stress laboral.
O que vai acontecer ao seu internato? Vai ser transferida para outro hospital?
Não sei. Isso agora será resolvido pela direção do internato e outras entidades competentes. Atualmente, sou uma interna que não tem orientador e com um péssimo ambiente no local de trabalho.