Saúde

Os desafios do menino que ensina que “comunicar não é só falar” estão contados em livro

António foi diagnosticado com uma síndrome rara. Com uma "vida muito atarefada", prova que a diferença não tem de ser má.
Os sintomas apareceram mais tarde.

Um em 20 mil. A vida de Carolina Chaves Graça-Morais mudou radicalmente devido a esta probabilidade. E foi também ela que fez nascer uma coleção de livros sobre Larico e as suas conquistas.

António tem quatro anos — faz cinco em abril — e, embora tivesse começado a revelar que “algo não estaria bem” logo aos seis meses, só aos dois anos e meio chegou o diagnóstico. Sofre de uma doença que muito poucos têm em Portugal, e, por isso, desconhecida da maioria (e que está agora a descobri-la graças a ele).

Carolina teve uma gravidez “bastante normal”, mas António revelou ser um bebé muito difícil. Chorava imenso, vomitava e não crescia muito. Ainda assim, Carolina só percebeu que o seu bebé não estava a desenvolver como os outros através do que lia num grupo de mães no Facebook.

“Aos seis meses não se sentava sozinho sem apoio, parecia que a cabeça era muito pesada e tombava”, conta à NiT. Entretanto, apareceu o estrabismo e um conjunto de outros sinais que levaram os pais a pensar que “haveria realmente qualquer coisa de errado”.

Logo deram início a uma maratona de consultas: neuropediatria, genética e muitas outras. Passaram por “mundo infinito de especialidades” — como nos conta a mãe — para perceber o que poderia ser. Depois de um longo percurso, apareceu a resposta: António tinha Síndrome de Angelman.

“Trata-se de uma doença rara com uma prevalência de 1 para 20 mil”, começa por nos explicar Marta Amorim, especialista em medicina genética dos Lusíadas. E acrescenta que existem vários mecanismos que dão origem à síndrome. “O mais habitual e o que acontece em cerca de 70 por cento dos doentes, é haver uma deleção de uma região do braço longo do cromossoma 15, que é a banda 113.”

António, o Larico da vida real.

Não foi, contudo, este o caso de António. Aliado à baixa probabilidade de sofrer da síndrome, a patologia de António surgiu com uma mutação nova — o que faz dela ainda mais invulgar. Carolina, aliás, já tinha associado alguns dos sintomas ao Angelman, mas o facto de os exames genéticos despitarem essa possibilidade fez com que se afastasse dessa hipótese.

“O mundo da genética é tão complexo, que nem tinha percebido que havia a possibilidade residual de haver esta doença com esta variação. Só depois percebi que pode acontecer ter os dois cromossomas, mas um deles não funcionar corretamente. É como ter duas pernas, mas uma delas está mais torta”, nota.

À NiT Marta Amorim explica que, ainda que os sintomas se comecem a verificar logo no primeiro ano, no período pré-natal, não há qualquer manifestação — “o que é mau, porque não nos possibilita fazer qualquer diagnóstico”. O atraso de desenvolvimento, que começa a ficar mais marcado sobretudo a partir dos 12 meses, é um dos primeiros sinais. 

Receber o diagnóstico foi o pior momento da vida de Carolina. “Foi o fim do mundo. Quando saí da maternidade tinha um bebé saudável e passado uns meses disseram-me que o meu filho seria ser tudo menos isso.”

A mãe confessa-nos que teve, depois, de aprender a desconstruir as expetativas que tinha criado (“erradamente”) para António e aceitar o cenário. Diz, porém, que não se conformou. “Talvez seja por isso que sou tão inquieta e tento fazer tantas coisas para tornar este tema mais ligeiro para os outros. Porque, de facto, é um peso muito grande.” Uma das formas que arranjou foi criar “As Conquistas do Larico”, uma coleção de livros infantis.

Para desenvolver o projeto e “dar cor e voz à personagem”, Carolina desafiou duas amigas: a escritora Joana Leitão e a ilustradora Raquel Pessoa e Costa. Cada livro retrata uma dificuldade sentida pelo menino. O objetivo é “transmitir estas coisas com esta ligeireza, porque acho que pesada já é a situação. Nunca tirando, claro, a seriedade do tema”.

A empreendedora espera dar esperança às famílias através da superação e quer associar a palavra “diferença” ao amor. É, segundo Carolina, nas famílias que a aceitação começa. “Se me sentir forte e capaz, também o meu filho se vai sentir assim e achar que pode fazer coisas que até então lhe tinham dito que seriam impossíveis”, afirma.

É exatamente isso que está acontecer com António. “Aos oito meses a médica disse que ele nunca iria andar ou falar. Basicamente seria um vegetal. Neste momento, anda, — ainda que com uma marcha um pouco à banda, que é fruto das própria características — e acredito que ainda vá melhorar bastante. Tem, claro muitas limitações, e não é autónomo, mas já faz um conjunto de coisas”, conta.

O António ensinou-me que comunicar não é só falar“, confessa. Para Carolina, só o facto de lhe dar a mão e ir com ela, ou perceber instruções simples como dar um abraço ao irmão, já é um ótimo avanço.

Sim, porque Carolina voltou a engravidar, mas só depois de António ter começado andar (aos três anos). Nessa altura, ambos os elementos do casal fizeram um estudo genético, para perceber se a mutação do primogénito seria uma questão hereditária. “No nosso caso não era”. Por todo o acompanhamento que teve, Carolina assegura ter-se sentido muito tranquila. Porém, o mesmo não acontece com muitos outros pais.

“Na maior parte destas situações, não há risco de ocorrência num futuro filho, a não ser que seja pela mutação do gene. Aí já é diferente e o risco de ocorrência aumenta. Ainda assim, é sempre uma coisa que preocupa muito”, atesta a especialista em medicina genética dos Lusíadas.

E se até aos três anos do António, a família não fazia “mais nada além de passar os dias no hospital em consultas de tudo”, hoje só lá vai quando alguma coisa não está bem. “Continua, porém, a ser um miúdo com as suas particularidades e como tal tem médicos de tudo.” Isto porque o menino tem uma epilepsia refratária severa, que envolve ter um acompanhamento de neuropediatria permanente.

À NiT, os pais contam que atualmente a vida de António não podia ser mais atarefada. “Vai às terapias (que vamos adotando à fase de desenvolvimento em que está e que permitem adquirir novas capacidades), depois à escola, vem para casa e, no final, tem a vida social normal”.

As conquistas do Larico

Ao identificar que existe um conjunto de dificuldades ao nível da inclusão do ponto de vista prático, Carolina Chaves Graça-Morais desafiou duas amigas para criar “As Conquistas do Larico” — uma coleção de livros infantis.

O nome, esse, chegou, como não podia deixar de ser, de António. “O meu filho faz muitas malandrices. E dava por mim a dizer ´oh, Larico, está sossegado`, nem sei bem porquê. Como a personagem é inspirada nele, fazia sentido que assim se chamasse.”

A missão de Carolina é clara: “Tornar a inclusão social um tema obrigatório na vida de todos, sensibilizar para a importância de ajudar o outro, integrar o que é diferente e ver que todos temos valências, apesar de, no fundo, todos sermos singulares e com competências distintas”.

O primeiro livro, “Planeta das Palavras” foi lançado a 14 de janeiro, na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. O segundo, já está pronto e a caminho da gráfica, mas só será publicado em setembro. A história tem uma versão em língua gestual — basta pedi-la através da página de Instagram.

Os apoios têm sido vários e Carolina garante-nos que não podia estar mais entusiasmada. “As pessoas têm-se juntado a nós para espalhar esta mensagem e tem sido incrível”, conclui.

Síndrome de Angelman

A Síndrome de Angelman (SA) é uma condição genética rara que resulta da ausência ou imperfeição do cromossoma 15 materno. Em Portugal, a ANGEL — “uma associação criada em outubro de 2011 por um grupo informal de pais de miúdos e jovens com Síndrome de Angelman” — já identificou cerca de 80 casos “sendo que, estatisticamente, este número deverá ascender a 500”.

Não obstante as pessoas com Síndrome de Angelman terem uma esperança média de vida equivalente à da restante população, nunca conseguem atingir a autonomia, encontrando-se totalmente dependentes de terceiros (familiares e/ou outros cuidadores) na prestação de cuidados e necessitando de acompanhamento regular por equipas multidisciplinares de profissionais de saúde e reabilitação”, lê-se no site da associação.

Segundo nos relata Marta Amorim, especialista em medicina genética dos Lusíadas, é habitual que estes miúdos não desenvolvam a linguagem, tenham alterações da marcha — “cerca de 10 por cento deles não chegam sequer a andar” — e desenvolvam microcefalia — “um perímetro cefálico mais pequeno do que deveria de ser”. Muitos deles, acabam por desenvolver também epilepsia e têm um comportamento muito típico da síndrome.

“Para quem está habituado a fazer consulta de genética, são sinais muito sugestivos”, afirma. Ao quadro de atraso de desenvolvimento comportamental, alia-se ainda uma hiperexcitação e emoções algo desajustadas”, acrescenta a especialista. A sensibilidade ao calor, a atração pela água, podem ser outras das pistas que ajudam a fazer o diagnóstico e a partir para os testes.

Uma vez diagnosticados é fundamental que os pacientes tenham um acompanhamento multidisciplinar, que envolve um pediatra especialista no desenvolvimento, um neurologista pediátrico, terapias da fala, ocupacionais e outras que contribuam para a sua estimulação.

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