As fronteiras fecham-se. Milhões de europeus barricam-se em casa sufocados pela ansiedade de uma pandemia e com uma pequena dose de esperança em barrar o caminho ao Covid-19. Mais a norte, em Inglaterra, um grupo de mais de seis mil corredores percorreu despreocupadamente as ruas de Bath, na meia-maratona habitual. Em Londres, a terceira cidade mais populosa do continente com perto de nove milhões de habitantes, a vida faz-se de forma normal para a maioria dos britânicos — e tudo isso faz parte de uma estratégia polémica do governo que, ao que parece, estará nos seus últimos dias.
De volta à curiosa corrida de Bath, apesar de ter recebido apenas metade do número habitual de participantes, o diretor do evento explicou que não recebeu qualquer advertência das organizações de saúde pública. Peritos locais sublinharam de que se tratava de um “evento de baixo risco”, não havendo qualquer motivo para não se realizar.
O tom de relativa despreocupação — isto quando comparado com os discursos dos restantes chefes de governo europeus — de Boris Johnson foi particularmente evidente na conferência de imprensa da passada quinta-feira, 12 de março, na qual os britânicos mais preocupados não encontraram qualquer tipo de conforto nas palavras do primeiro-ministro. “Tenho que ser sincero convosco: muitas mais famílias vão perder os seus entes queridos antes do seu tempo”.
O plano de abordagem britânico é radicalmente diferente do que tem sido aconselhado pela Organização Mundial de Saúde e adotado pelos países já afetados pelo novo coronavírus. As escolas continuam a funcionar, os restaurantes e bares também e isolamento obrigatório, nem vê-lo. Em causa está um objetivo: deixar que a Covid-19 chegue, lentamente, à maioria dos cidadãos britânicos, para que se chegue à tão desejada imunidade coletiva.
O problema? Como revela o cronista da NiT, diretamente do centro de Londres, o assalto aos bens dos supermercados já começou e as medidas e os discursos de Boris pouco fazem para acalmar uma população que parece duvidar da solução apresentada pelo governo. Não são os únicos — mas já lá vamos.
A imunidade coletiva como solução
Marc Lipsitch, epidemiologista em Harvard, previu que o vírus infetaria, no espaço de um ano, entre 40% a 60% da população mundial. Números que foram revistos em baixa para um alcance de 20 a 60%. Nathan Grubaugh, outro epidemiologista, desta vez da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de Yale, nos EUA, sabe que sem uma vacina eficaz — alguns testes clínicos já tiveram início, embora não se preveja que o processo dure menos do que 18 meses —, não se antevê um fim da pandemia que não resulte “em milhões de infeções”.
Colocada de lado a possibilidade de conter o surto, explica o especialista, a outra forma de retomar algum controlo sobre a situação é se um grupo suficiente de pessoas contrair a Covid-19 e desenvolver imunidade ao vírus, “criando essencialmente uma imunidade coletiva”.
“Se alguém com sarampo está rodeada de pessoas que estão vacinadas contra a doença, ela dificilmente será passada e rapidamente desaparecerá”, revela o Vaccine Knowledge Project da Universidade de Oxford sobre a imunidade coletiva. Sem uma vacina eficaz, há apenas um caminho cheio de riscos para atingir o mesmo fim, sem quaisquer garantias de sucesso: deixar que a infeção alastre pelas franjas mais saudáveis da população — daí que poucas medidas de isolamento tenham sido tomadas —, pedido aos mais velhos que, esses sim, se resguardem em casa e evitem o contacto social.
“Se um número suficiente de pessoas estiver exposta a uma infeção, desenvolver anticorpos e tornar-se imune, poderemos ter uma imunidade coletiva natural, e esse vírus concreto não terá a capacidade de provocar uma epidemia na população. Isso não significa que não seja capaz de se espalhar e haverá sempre pessoas suscetíveis que ficarão expostas”, diz Mark Woolhouse, professor de epidemiologia na Universidade de Edimburgo.
A estratégia passa, portanto, por aplicar as medidas de isolamento social de forma mais lenta — e apresenta-se como alternativa ao “achatamento da curva”, aplicada nos restantes países. No fundo, são duas formas diferentes de tentar chegar ao mesmo fim: ganhar tempo até que uma eventual vacina eficaz seja distribuída.
O número de infetados avançado por Lipsitch é sensivelmente o mesmo que os responsáveis britânicos do governo calcularam: 60 a 70% da população infetada, perto de 40 a 50 milhões, para garantir que a imunidade coletiva é assegurada. “Achamos que o vírus regressará todos os anos, tal e qual um vírus sazonal. Assim, as comunidades vão tornar-se imunes e isso vai ser importante no controlo do vírus a longo prazo”, revela Sir Patrick Vallance, o principal conselheiro científico de Johnson.
A estratégia é previsivelmente polémica e, por isso, não é oficialmente assumida pelo governo. “A imunidade coletiva não é o nosso objetivo ou política. É um conceito científico”, revelou o ministro da Saúde, Matt Hancock. Apesar do jogo de palavras, as críticas não tardaram.
Uma estratégia polémica
“O objetivo é a imunidade coletiva e tentar prevenir uma segunda epidemia no próximo inverno, mesmo que Matt Hancock o negue”, aponta William Hanage, professor de epidemiologia em Harvard, acérrimo crítico da estratégia do governo britânico, avisa que “ninguém deverá estar sob a ilusão de que isto é algo ao qual podemos escapar através de uma qualquer espécie de manipulação de um vírus que só agora começamos a conhecer”.
O especialista não foi o único a mostrar-se indignado com a opção estratégica do governo. Numa carta aberta publicada no sábado, 14 de março, 229 cientistas, entre matemáticos e geneticistas, pediram a Johnson que tomasse medidas mais restritivas, já que a disseminação, mesmo que supostamente controlada da doença, iria colocar o Serviço Nacional de Saúde sob demasiado stress e assim “arriscar mais vidas do que as necessárias”. Pedem uma ação mais semelhante à acionada por outros países europeus e deixam fortes críticas a Johnson e Vallance, com o Departamento de Saúde britânico a explicar que as intenções do responsável científico do governo foram mal interpretadas.
Trata-se de uma estratégia arriscada e nunca antes testada, sendo particularmente perigosa dado o facto de ainda se saber muito pouco sobre o comportamento do novo coronavírus e a imunidade que pacientes curados têm efetivamente. Pior: esta disseminação controlada é, na verdade, tudo menos controlada, e colocará em risco milhões de cidadãos mais velhos e, portanto, mais vulneráveis.
Atualmente com 1.391 casos confirmados, 35 mortes e 20 recuperações, o Reino Unido é o sexto país mais afetado na Europa — um número que será bem mais alto, conforme admitido por Boris Johnson, até porque a realização de testes está restrita a pacientes hospitalizados.
As muitas críticas parecem ter ajudado a mudar o rumo da estratégia do governo, que começa a promover o auto-isolamento dos cidadãos acima dos 70 anos, a que provavelmente se seguirão mais medidas para impedir a disseminação e o contágio da Covid-19.
O relatório confidencial que prevê o pior
Antes de que Johnson possa mudar o rumo da política de combate ao novo coronavírus, a imprensa inglesa divulgou esta segunda-feira, 16 de março, um documento secreto da Public Health England — uma das agências do Departamento de Saúde — dirigido aos dirigentes do Serviço Nacional de Saúde, que prevê que a epidemia dure até à primavera de 2021 e leve a que 7.9 milhões de britânicos sejam hospitalizados, com 80% da população infetada.
“Um ano é perfeitamente plausível, embora se trate de um número de que muitos não vão gostar ou sequer compreender. Acredito que possamos ver uma redução no verão, mais para o final de junho, e um regresso em novembro, tal como acontece com a gripe sazonal”, revela Paul Hunter, professor de medicina, em declarações ao jornal inglês “The Guardian”.