Saúde

Marie tem uma doença crónica de que só se fala quando desencadeia surtos psicóticos

O transtorno bipolar voltou a ser debatido após a influencer ter partilhado o seu diagnóstico, na sequência de um episódio maníaco.
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Em janeiro, a ex-concorrente dos reality shows “Dilema” e “Big Brother Famosos”, conhecida como La Vie de Marie, anunciou publicamente que tinha sido diagnosticada com bipolaridade. A revelação surgiu na sequência de um vídeo partilhado em novembro de 2024 nas redes sociais, onde aparecia a dançar no altar de uma igreja na Covilhã, visivelmente alterada. As imagens, entretanto apagadas, geraram uma onda de reações negativas e a paróquia chegou mesmo a avançar com uma queixa contra a influencer.

O episódio veio a juntar-se a outros comportamentos impulsivos e dificuldades em gerir as emoções, observados durante a participação nos dois programas da TVI. Aliás, nas plataformas digitais TikTok, YouTube e Instagram, onde Maria Manuela Gomes (o seu nome de batismo) se apresentou ao mundo para relatar a sua vida, nunca escondeu os seus problemas de saúde mental.

Marie, com 24 anos, chegou mesmo a escrever um livro em parceria com uma colega do “Big Brother Famosos”, a escritora e jornalista Virginia López, — “La Vie de Marie: A Verdadeira História”, publicado em 2022, onde aborda os seus traumas de infância, a relação com a família, e relata como foi crescer com depressão e transtornos alimentares.

Contudo, o incidente na igreja teve outros contornos, mais graves, como a própria explicou num story no Instagram. “Tem sido estranho para mim agora ter saído de um surto de euforia muito profunda e só agora entender o meu estado nos últimos tempos. Sinto vergonha, mas, ao mesmo tempo, é algo que estava fora do meu controlo.”

A sua partilha reavivou o debate público sobre o transtorno bipolar, patologia anteriormente conhecida como psicose maníaco-depressiva e em torno da qual ainda existe um grande tabu, devido ao estigma social que lhe está associado.

“O transtorno bipolar agrega um conjunto de doenças que se subdividem em tipo um e dois, sendo o primeiro mais grave. Caracteriza-se por oscilações de humor entre fases depressivas e maníacas ou hipomaníacas, e manifesta-se mais frequentemente em idades jovens”, começa por explicar Guida da Ponte, psiquiatra da Sociedade Portuguesa Psicossomática, à NiT.

Atualmente, o transtorno bipolar atinge cerca de 140 milhões de pessoas no mundo e estima-se que a prevalência global seja de um a dois por cento da população mundial, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Já em Portugal, esta doença crónica afeta mais de 200 mil pessoas, o que corresponde a aproximadamente dois por cento da população adulta, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde Mental. 

O diagnóstico preciso do transtorno bipolar requer uma avaliação clínica cuidadosa por um profissional de saúde mental qualificado. “Primeiro, fazemos uma entrevista ao doente para avaliar as suas queixas e historial. Depois temos de apurar essa informação, porque uma coisa é aquilo que o paciente nos conta, outra é verificar se se encaixa na sintomatologia”, salienta a psiquiatra.

Alguns sintomas comuns incluem irritabilidade extrema, alterações emocionais bruscas e imprevisíveis, reação exagerada a estímulos, aumento da libido, perda de noção da realidade, redução da necessidade de sono e incapacidade de reconhecer a doença.

Geralmente, o diagnóstico surge após uma fase de mania, de início súbito — como parece ter sido o caso de Marie—, sendo que este surto maníaco pode durar de duas semanas a vários meses.

Cerca de metade dos casos manifesta-se pela primeira vez antes dos 25 anos, embora a causa exata do transtorno bipolar seja desconhecida. O que se sabe é que pode estar associado a alterações em certas áreas do cérebro e a flutuações nos níveis de vários neurotransmissores (dopamina, serotonina e noradrenalina), o que indica que existirá uma predisposição genética.

“A perturbação pode manifestar-se devido a vários fatores que podem ‘servir de gatilho’, como elevados níveis de stress, distúrbios do sono, eventos traumáticos na infância ou vida adulta e até consumo de drogas e álcool”, detalha a especialista em psiquiatria.

Até ao momento, não é conhecido nenhum método de prevenção eficaz, uma vez que a causa exata da bipolaridade ainda não foi determinada. Como se trata de uma patologia crónica, ou seja, “para a vida”, os pacientes requerem acompanhamento clínico regular durante o processo terapêutico, que inclui medicação e psicoterapia.

“Em rigor, para o doente ter qualidade de vida tem de ter supervisão médica. É um processo que se prolonga vários anos”, sublinha Guida da Ponte. “O diagnóstico e controlo da perturbação só são feitos se o doente procurar ajuda médica, pelo que, até esse momento, está sujeito às consequências da gravidade ou cronicidade dos episódios maníacos, ou depressivos”, acrescenta.

A administração de fármacos varia de pessoa para pessoa e consoante a fase da doença em que se encontra, mas, habitualmente, inclui estabilizadores de humor, que ajudam a controlar o transtorno e reduzem o risco de recaídas. O lítio é uma das substâncias mais utilizadas nestes casos, pela sua eficácia na prevenção de episódios maníacos e depressivos. Já durante episódios maníacos podem ser administrados antidepressivos e antipsicóticos. Em casos graves, pode mesmo ser necessário internamento hospitalar.

As oscilações de humor são a característica mais marcante da bipolaridade, e podem ter um elevado impacto nas sensações, emoções, ideias e comportamento da pessoa afetada. Em situações extremas, podem ocorrer surtos psicóticos, que não são exclusivos do transtorno bipolar, podendo ocorrer noutras patologias, como a depressão ou a esquizofrenia. Guida da Ponte descreve estes surtos como “indicadores de gravidade, representados por um conjunto de sintomas que variam em intensidade”.

A psiquiatra realça que embora a doença bipolar não tenha cura, pode ser tratada e controlada. Por um lado, é importante aprender a reconhecer os fatores que podem desencadear um episódio para tentar evitá-los e conseguir manter longos períodos relativamente longos de estabilidade. Por outro, os pacientes devem também aprender a identificar os momentos de mania ou depressão, sendo que o suporte social é fundamental para ajudar a própria pessoa a compreender que o seu comportamento se deve ao transtorno. “O apoio da família e da comunidade são fundamentais para criar uma rede de apoio para os doentes bipolares”, conclui.

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