Chamavam-lhe o senhor resmungão. O aviso intimidava mas tinha algo de ternurento. Os problemas de saúde contavam parte da história. O feitio e a parte emocional contavam outra. Ainda assim, era um aviso: naquele quarto não estava o paciente mais fácil.
O senhor resmungão tinha sido indicado pela equipa de enfermeiras. Diziam que toda a gente saía corrida daquele quarto, até os médicos. “Entrámos e encontrámos um senhor sentado num cadeirão, virado para a frente, mas com um ar muito fechado, uma pessoa muito triste. A dada altura as enfermeiras vieram espreitar porque não sabiam como é que ainda estávamos naquele quarto. E quando saímos deixámos um senhor naquele cadeirão, direito, a olhar-nos de frente, com uma expressão completamente diferente de quando chegámos”.
A história é-nos contada por Isabel Rosado, dirigente da Palhaços d’Opital, uma associação sem fins lucrativos a cargo de uma equipa de especialistas em palermologia. Na hora de cuidar de pessoas internadas, há um lado médico imprescindível. Mas há também um lado humano que não deve ser descurado. De nariz vermelho, munidos com canções, truques e espalhafato, levam sorrisos até pessoas no seu momento mais frágil.
“O Jorge tinha esta paixão de há muito. Ele já trabalhava como voluntário como doutor palhaço. Há coisa de dez anos”, recorda Isabel, “o Jorge deu uma TEDx em Coimbra sobre a visão do mundo de um doutor palhaço. Na altura a reação das pessoas foi impulsioná-lo a começar um projeto dele”. Isabel foi uma dessas pessoas, conta.
Na altura, Isabel e Jorge Rosado eram os dois professores. Eram e ainda são, marido e mulher. Ao início Isabel começou só por querer ajudar Jorge com esta paixão. Foi há oito anos. Muito mudou desde então e a tal paixão tornou-se também dela.
Quando começaram a bater à porta de hospitais, a reação foi de uma certa surpresa. Este tipo de projetos geralmente eram pensados para crianças. “Como vivemos em Cantanhede, perto de Coimbra, começámos por hospitais mais próximos. O Hospital Pediátrico de Coimbra já tinha o Nariz Vermelho, fomos a Aveiro, e começámos a refletir no porquê de começarmos um projeto para crianças quando isso já existia”.
Além do mais, “nas primeiras conversas que tivemos com hospitais, mostrámos interesse em ir a outros serviços e estar com doentes, explicaram-nos que as pessoas contactam sempre os hospitais com ideias para as crianças. Isso para nós foi um fator decisivo”. Começaram como voluntários e tornaram-se pioneiros na Europa, ao fundar de raiz um projeto nestes moldes para a população mais sénior.
“Os mais velhos têm uma média de atendimento de 15 dias enquanto as crianças têm de quatro. E acabam por estar muito mais sozinhos. Os pais acompanham as crianças. A realidade dos mais velhos é muito diferente”, explica Isabel à NiT.
“Começámos a ter solicitações para trabalhar com públicos ainda mais específicos: pessoas com Alzheimer ou outras demências, doentes oncológicos, cuidados paliativos. E a cada desafio novo acabávamos por nos apaixonar mais um bocadinho pelo impacto que sentíamos do outro lado. As próprias equipas dos hospitais partilhavam connosco histórias, de pessoas perguntarem por nós, gente que ao segundo internamento perguntava ‘E desta vez, também temos doutores palhaço?”. E a coisa foi crescendo.
Hoje em dia os Palhaços d’Opital são já um projeto a tempo inteiro para ambos. A equipa é também maior. São uma estrutura profissional, com performers remunerados. “Para termos qualidade, era preciso trabalhar com profissionais pagos”. Os doutores palhaços ali têm de já ter de origem algum tipo de experiência de teatro, música ou como clown. Todos os anos fazem cerca de 250 horas de formação, com trabalhos de ensaios, treino de canto e música. As principais qualificações, no entanto, são bastante simples e humanas: “têm de gostar de trabalhar em equipa, de querer aprender e crescer enquanto profissionais, de ter alguma sensibilidade e uma grande dose de respeito pelo outro”. “São seres humanos a trabalhar para seres humanos, acreditamos num tratamento igual para todos, não aceitamos nenhum comportamento de discriminação”, reforça.
A ideia não é um simples princípio ético. É também bastante prático: as atuações vão ser para pacientes das mais diversas origens e com os mais diversos problemas de saúde. “Há pessoas muito fragilizadas, só podemos dar o nosso melhor e só podemos contribuir para que fiquem melhor”. É isso que procuram fazer a cada visita a um novo hospital.

IPO de Coimbra, os centros hospitalares de Baixo Vouga e Tondela Viseu ou o Hospital Distrital da Figueira da Foz são alguns dos espaços com quem têm trabalhado. A pandemia obrigou a inevitáveis paragens no projeto mas as pausas serviram também para continuar a crescer. Criaram mais conteúdos digitais, apostaram num canal e estão a preparar para breve mais regressos, presenciais, a diferentes hospitais. Contam também cumprir este ano um objetivo que era para 2020 mas a pandemia atrasou: vão começar a atuar também num hospital em Lisboa. O caminho até aqui foi sempre de aprendizagem e evolução.
Parte do financiamento para os risos que administram chega através de fundos europeus. Contam também com o apoio de empresas parceiras, além de campanhas de angariações de fundos e sócios. O tal lado profissional conta, por isso, com toda uma rede de apoio que reflete algo que a Covid-19, com o desafio de isolamento que trouxe, nos veio relembrar: não podemos esquecer as populações mais velhas.
O dia da visita
“Nós trabalhamos em contacto com a própria equipa médica”, explica Isabel. !Uma visita nossa começa primeiro com uma reunião com o chefe de serviço onde vamos atuar”. São doutores palhaço, o que quer dizer que não é propriamente resultados de exames ou análises o que querem saber. “A nós não nos interessa o lado médico, interessa-nos o lado anímico”. Muitas vezes recebem pedidos específicos dos profissionais de saúde: “temos aqui uma pessoa que está a precisar particularmente de vocês”. A receita médica, já se sabe, é aviada em sorrisos.
“Para nós é uma mais valia” este diálogo com as equipas de saúde, destaca Isabel. “Podemos estar em situações onde a nossa atuação vai ser ainda mais importante”. Geralmente aproveitam também para almoçar, mantendo as personagens, no próprio hospital onde atuam, o que quer dizer que o humor se prolonga, para doentes e profissionais de saúde, durante a refeição.
Começaram cedo a perceber que o impacto que podiam ter na vida de um paciente era maior do que imaginavam. “Entre as coisas que mais me chocaram ao início foi ter pessoas mais velhas a agradecer o tempo que lhes estamos a dar. Usam termos como ‘a menina não tem nojo de me dar um beijo?’. Isto”, prossegue, “ajudou-me a perceber que não quero fazer parte de uma sociedade que deixa pessoas para trás. Devemos retribuir o que os mais velhos fizeram para nós. Temos que usar também o nosso tempo, enquanto mais novos, para alterar o que não gostamos na sociedade. Hoje é pelos nossos avós, pelos nossos pais. Amanhã será por mim”.
Por vezes o tratamento tem resultados inesperados. “A filha de um senhor no IPO de Coimbra deixou-nos uma mensagem no Facebook a contar que o irmão lhe tinha perguntado se tinham mudado a medicação do pai. ‘Ele agora dizia que só queria ir para o IPO porque estão lá aqueles palhaços’”. “É alguém que, por momentos, em vez de estar preocupado com a doença, quer ir cantar com os palhaços. Quando mudamos aquele chip, é a cereja no topo do bolo”, conta.
Por vezes a violência da realidade está lá para lembrar a força inesperada de uma simples performance. “Tive uma senhora que veio ter comigo na Figueira da Foz a meio da atuação, enquanto esperava no corredor para um raio-x. Estávamos no início do verão e a senhora tinha mangas compridas, um lenço. A maneira como estava vestida chamou-me a atenção. E a senhora agarra-se a mim e diz-me só ‘obrigada por estarem aqui’. A senhora ficou a assistir ao resto da performance e no final volta-se a agarrar a mim e diz-me: obrigada, minha querida. Aquele sacana dá cabo de mim, há tantos anos que eu não me ria assim”. As mangas da roupa talvez escondessem marcas. Um sorriso revelava um sinal de esperança.
Um lado mais humano
Nestes últimos oito anos em que se têm dedicado a animar a população mais sénior em hospitais, a qualidade de vida na terceira idade tem-se debatido um pouco mais. “Há muito trabalho a fazer e a pandemia até trouxe o tema um pouco mais à luz do dia. Espero que a sociedade esteja mais desperta para esta realidade. E isto é algo para que todos podemos contribuir, às vezes bastando fazer um telefonema a um vizinho ou a dar um sorriso quando vamos na rua, que, mesmo com a máscara, percebe-se”.
No último ano em particular, uma parte considerável da população mais velha portuguesa viveu longos períodos de tempo em isolamento. É fácil de adivinhar que vem também aí um teste à nossa capacidade de responder ao desafio. No que à saúde diz respeito, há este lado humano que pode ser mais importante do que se pensa.
Da parte dos Palhaços d’Opital, eles estão sempre disponíveis para dar uma ajuda, mesmo a atrapalhar. Pode acompanhar esta invulgar equipa médica nas redes sociais ou através do YouTube. Pode também descobrir mais sobre o projeto no site oficial.
Entretanto, os Palhaços d’Opital são já caso de estudo e não usamos a expressão à toa. Têm estado integrados num estudo desenvolvido no IPO de Coimbra, com a faculdade de Medicina e a de Psicologia da Universidade de Coimbra. O estudo envolve a análise de biomarcadores antes e após a performance dos doutores palhaço. Os dados finais serão conhecidos em maio mas podemos antecipar que, no que a stress diz respeito, as palhaçadas têm suporte cientifico favorável.