Saúde

Tem 37 anos e já fez mais de 600 retiros. “A ayahuasca ajuda-me a resolver problemas”

Marco é natural de Lisboa e organiza cerimónias secretas com este psicadélico. Em Portugal a substância não está regulamentada.
A Ayahuasca é preparada pelos povos indígenas.

“As experiências psicadélicas com a ayahuasca mudaram a minha vida.” Marco Pinheiro (nome fictício) tem 37 anos e organiza rituais “onde os participantes fazem viagens difíceis de explicar”. O lisboeta pediu anonimato à NiT, uma vez que a prática e as substâncias utilizadas não estão regulamentadas em Portugal. “E ainda há quem olhe para isto de forma pejorativa”, justifica.

A ayahuasca é preparada há milhares de anos pelos povos indígeneas da América do Sul, em particular nas regiões da Amazónia e Orinoco. O seu consumo estava originalmente restrito a áreas específicas do Peru, Brasil, Colômbia e Equador, no âmbito de cerimónias religiosas ou como tratamento para determinadas maleitas, prescrito pelos curandeiros das tribos.

Trata-se de uma bebida — muito semelhante a um chá — com propriedades alucinogénicas, feita a partir de de plantas nativas da floresta amazónica. A preparação baseia-se na decocção prolongada dos caules do cipó (um tipo de videira) Banisteriopsis caapi e das folhas do arbusto Psychotria viridis (conhecido como cacrona no Brasil). Contudo, existem inúmeras variações desta receita-base, que recorrem a outras espécies, seja como adição ou substituição.

Esta última espécie (P. viridis) contém dimetiltriptamina (DMT), uma substância altamente psicadélica, mas inativa por via oral. Ou seja, requer a combinação com os compostos ativos da Banisteriopsis caapi, que interrompem o metabolismo hepático e gastrointestinal do DMT, permitindo-lhe atingir a circulação sanguínea e o cérebro, onde ativa os receptores das áreas frontal e paralímbica.

A ayahuasca é tradicionalmente bebida em cerimónias de grupo conduzidas por um facilitador experiente ou por um xamã. Por norma, o consumo de ayahuasca acontece no âmbito de um ritual, que pode pode ser acompanhado por música de fundo, entoação de sons e outros cada pessoa tem a sua experiência, que pode variar também muito.

O efeito pode durar entre quatro a oito horas. Os sintomas mais comuns são modificações transitórias nas emoções, pensamentos e perceção. Marco relata o que costuma sentir: “Parece que somos transportados para outra realidade, onde o cérebro começa a organizar memórias de forma muito rápida”

Os qúechuas vivem na zona dos Andes.

A designação pela qual a bebida se tornou amplamente conhecida, deriva do qéchua (um idioma falado por vários povos oriundos da região dos Andes). “Aya” significa alma e “wasca” significa corda. Assumiu mais tarde a grafia hispanizada ayahuasca, expressão que significa “vinha dos espíritos” ou “trepadeira da alma”.

Consumida tradicionalmente pelos indígenas para fins espirituais e medicinais, a partir de meados do século XX, a bebida começou a ser amplamento utilizada noutros países — em especial no Brasil, no contexto do surgimento de religiões sincréticas (como o Santo Daime, a União do Vegetal ou a Barquinha) que entretanto se expandiram também a outros países.

Uma viagem com ayahuasca

Marco fez o primeiro ritual durantes umas férias de família, há cerca de seis anos. “A minha mulher é brasileira e uma vez por ano tentámos ir à sua terra natal. Em 2017 não foi diferente. Marcámos tudo sem sonhar que estávamos prestes a descobrir uma substância que ia mudar a nossa vida para sempre”, começa por contar à NiT.

As primeiras semanas não oscilaram muito entre relaxar, descansar e “comer”. Porém, quando visitaram uns familiares viam há muito tempo, foram confrontados com uma realidade diferente. “Gostam sempre de nos apresentar coisas novas, desde comida a sítios por onde passaram. Mas desta vez o meu cunhado falou-me de algo novo, que o tinha feito colocar tudo em perspetiva.”

O familiar falava de uma cerimónia, feita numa floresta, que o levava numa “viagem espiritual”. Convenceu Marco e a mulher a acompanharem-no ao próximo. Assim foi. “Decidi abrir mais a mente e fui completamente ao encontro do desconhecido. Não fiz qualquer pesquisa. Apenas perguntei se era algo seguro, fisicamente”, recorda.

Sem qualquer expectativa ou ligação religiosa que o atraísse a participar rem algo do género, foi mais por curiosidade “para ver do que se tratava”. O que não esperava é que aquela noite fosse tão reveladora. “Mudou completamente como via o mundo. Deixei de julgar tanto.”

O português, na altura com 31 anos, participou pela primeira vez num ritual de ayahuasca. Este tipo de cerimónias normalmente realizam-se em locais privados, perto de florestas para estarem em contacto com natureza. “Na que fiz, os participantes sentam-se num círculo, é lhes explicado os possíveis efeitos, o que estão ali a fazer e depois bebem um chá preparado no Acre, na Amazónia”, explica Marco Pinheiro.

“Uma experiência transcendente”

“O sabor é muito característico, com um travo a terra, mas amargo ao mesmo tempo. Porém, isso pode mudar conforme a maneira como é preparada”, ressalva. Após beberem a ayahuasca, começa a viagem – supostamente.

Com Marco não foi assim. “Ao início não senti rigorosamente nada. Decidi levantar-me e deambular um pouco sozinho. Só quando voltei a sentar-me no círculo, fechei os olhos e relaxei é que senti o efeito. Pareceu-me ouvir uns barulhos, depois via um género de linhas brilhantes que se mexiam no horizonte, ao som da música de fundo”, descreve. Ficou assustado com que sentia, mas não havia muito a fazer. “Estava ali para experimentar e deixei-me ir.”

Entretanto, começou a tremer e sentiu-se nauseado. “Após vomitar, foi como se o meu corpo tivesse feito uma limpeza e entrei então na viagem que tanto falavam. Senti que conseguia observar tudo, mas de olhos fechados. Podia até olhar para dentro de mim, entender os julgamentos que fazia na minha cabeça, sem saber. Foi surreal e espetacular ao mesmo tempo”, conta.

Após esta primeira experiência psicadélica, Marco quis “voltar a sentir o mesmo”. Passados uns dias voltou ao mesmo local, para mais um retiro. O fenómeno repetiu-se. “Parecia que o meu cérebro era moldado de tal forma para que eu pudesse fazer uma introspeção. Ajudou-me a resolver muitos dilemas interiores e fez-me dar mais valor às pessoas que gosto, como os meus pais e a minha filha”, garante.

Na altura não pensou sequer quando iria voltar a repetir uma experiência semelhante após as férias. No entanto, após uma temporada no Brasil, mudou de ideias. “O impacto que os rituais tinham na minha vida era tão grande que não podia ignorá-lo. Prolongámos a viagem para poder aprender tudo sobre nós próprios e sobre a ayahuasca — como se prepara, os cuidados a ter, tudo.”

Ainda assim, não tinha intenção de participar em cerimónias quando voltasse a Portugal — até porque não sabia se era algo praticado cá. “É preciso ter muito cuidado onde vamos fazer, porque quando estamos sob o efeito daquela substância ficamos muito vulneráveis e somos facilmente manipuláveis”, realça.

A preparação da Ayahuasca. Fotografia ilustrativa da Wikipedia.

Volvidos seis anos, já fez mais de 600 rituais, a maioria em Portugal, onde ainda não existe uma regulamentação para este tipo de psicadélicos. “Fiquei de tal forma fascinado com este mundo que quis trazê-lo para cá. Atualmente organizo as minhas próprias cerimónias”, conta à NiT. Marco tem um espaço, na zona de Lisboa, onde começou por receber amigos e familiares. Agora participam dezenas de interessados em beber ayahuasca. O máximo que acolheu numa cerimónia foram 50 pessoas. “Mais do que isto é um risco, porque podem descontrolar-se com o efeito alucinogénico.”

Assim que se inscrevem para um retiro organizado por Marco Pinheiro, os participantes recebem a indicação para fazerem uma dieta. “A ayhuasca atua no sistema nervoso das mesma forma que os chamados cogumelos mágicos ou LSD. As plantas utilizadas na preparação têm componentes psicadélicos e antidepressivos. Por isso recomendamos que não comam produtos de origem animal, não injetem qualquer droga, ou bebam álcool para evitar reações adversas quando tomarem o chá. Também não é aconselhado a pessoas que tenham problemas psicológicos graves como bipolaridade, esquizofrenia ou depressão grave. Para ajudar temos também o apoio de uma médica.”

O lisboeta não é o único a realizar estes rituais em Portugal. Uma rápida pesquisa online leva-nos a concluir que há todo um mundo para explorar, com organizações espalhadas de norte a sul. As atividades podem demorar umas horas, como é o mais comum na propriedade de Marco, um fim de semana, ou períodos mais longos. Os preços variam entre os 70 e os 400 euros.

O risco de consumir ayahuasca

Além das náuseas e desarranjos intestinais, descrito por Marco Pinheiro, o chá pode ter outros efeitos físicos imediatos como taquicardia, tonturas, aumento da pressão arrterial, dor no peito e até convulsões. A intoxicação com DMT também pode causar hipertensão. Em casos mais graves, pode provocar dores de cabeça, surtos psicóticos, problemas respiratórios, que podem ser fatais.

Mas não é tudo. A experiência pode ser assustadora, principalmente se for realizada sem o acompanhamento de pessoas treinadas e preparadas para auxiliar quem a ingere. Porém, o maior risco, como em qualquer outra substância alucinogénia, está na vontade de conseguir repetir “a primeira sensação”, o que adiantámos desde já que é impossível.

A primeira vez que se experimenta ayahuasca o organismo recebe uma substância desconhecida e ainda não sabe como reagir. Nas vezes seguintes o efeito surpresa já não existe. Muitas pessoas acabam por tentar replicá-lo e aumentam as doses, ou a frequência dos rituais em busca de algo que não irá acontecer. Nestes casos pode levar a uma dependência psicológica — e não só.

Outro perigo associado a estes rituais, é o grande secretismo. Muitos dos participantes nos rituais não sabem exatamente o que leva a bebida, como ou onde foi preparada. A maioria dos organizadores refugiam-se no facto de ser um ritual milenar, com pormenores que apenas os indígenas podem conhecer, deixando assim muitas questões objetivas sem resposta.

Estas são apenas algumas razões que explicam porque é que a maioria das drogas alucinogénicas são ilegais na União Europeia. No entanto, noutras partes do mundo, alguns compostos psicadélicos são consumidos pelas suas propriedades curativas, sendo também usados no contexto de cerimónias espirituais e culturais, como no Brasil. Em Portugal, o consumo da ayahuasca não está regulamentado, o que significa que não existe legislação que o autorize ou proíba — o que justifica o secretismo em torno dos retiros. Mas em Espanha, por exemplo, o uso da substância está estritamente proibido.

Marco quer continuar a ajudar pessoas a “encontrarem-se” e realiza cerimónias todas as semanas. Mas confessa que a legalização da substância para usos recreativos o assusta. “Há prós e contras, como em tudo. Porém, tenho receio da massificação desta prática milenar e o mau uso da mesma”, remata.

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