Na cidade

Edifícios abandonados: a estação de rádio que os americanos usaram na Guerra Fria

Foi alvo de um atentado terrorista, passava músicas de Amália e esteve no centro da luta americana contra o comunismo. Tudo isto numa herdade do Ribatejo.
Foto de Gonçalo Gouveia/GG Photography

Um jipe, máquinas industriais, fichas de alunos ou arcas frigoríficas. Na piscina, ainda está lá o escorrega e, encostadas a um canto, duas espreguiçadeiras envelhecidas. Continua: na estação de rádio, o edifício onde tudo começou, sobrevivem transmissores, máquinas de escrever e uma foto envelhecida do Papa João Paulo II. Estão ali, numa herdade com 196 hectares em Glória do Ribatejo, uma freguesia que já nem sequer se chama assim — foi extinta pela reorganização administrativa de 2012/2013, passando a fazer parte da União de Freguesias de Glória do Ribatejo e Granho.

18 anos depois, é este o estado da RARET (RAdio RETransmissão), aquele que foi, durante quase um século, o maior posto emissor da Rádio Europa Livre. A apenas 70 quilómetros de Lisboa, esta estação de rádio difundiu muitas notícias, programas e músicas que estavam proibidas na Europa do Leste, e colocou Glória do Ribatejo, no concelho de Salvaterra de Magos, no centro da Guerra Fria.

O complexo revolucionou a vida das pessoas do concelho. No início foram contratadas muitas pessoas de Glória do Ribatejo e arredores, que não faziam a menor ideia do que iam fazer. Só que o tempo foi passando e a RARET deixou de ser uma simples estação de rádio para se transformar numa comunidade. Construíu-se uma escola, campos de desporto, uma piscina, uma área residencial para funcionários deslocados e até uma maternidade. Em 45 anos, os americanos revolucionaram a vida dos habitantes de Glória do Ribatejo. Tudo graças a uma estação de rádio construída para combater o comunismo.

Vamos recuar. Na década de 50, os governos de Portugal e dos EUA estabeleceram um acordo para construir uma estação de rádio para emitir propaganda anti-soviética para os países do bloco comunista. Os norte-americanos achavam que Portugal reunia todas as condições necessárias para receber um projeto destes. O local escolhido foi a Herdade de Nossa Senhora da Glória: o terreno era perfeito, uma vez que era plano, tinha muitos hectares e ficava numa localização muito discreta.

“Sabíamos que era um centro transmissor”, contou à SICAleixo Fernandes, engenheiro mecânico na RARET, em 2012. “Agora qual era finalidade não sabíamos. Nós éramos técnicos, puramente técnicos, não estávamos envolvidos em políticas nem nada.” Ainda assim, os portugueses tinham uma ideia de qual era o intuito da rádio transmissora: “Sabíamos que era para os países da cortina de ferro, para os informar do que é que se passava para lá da cortina de ferro. Isso sabíamos.”

A RARET começou a transmitir em 1951 e, nessa altura, só operava durante cerca de cinco horas por dia. Foram contratadas pessoas dos países do leste para servirem de tradutores, sendo que uma das figuras mais importantes no início da estação de rádio foi um italiano chamado Pasqualino. Mário Portugal Bettencourt Faria recorda-o como um homem “muito simpático”, que falava melhor português do que muitos portugueses. “Foi até devido à sua facilidade em aprender línguas que conseguiu escapar de um campo de concentração dos países de leste (…) segundo nos comunicou, falava fluentemente 12 idiomas. Este facto deu-lhe entrada imediata na PIDE, onde era muito admirado.”

Nos primeiros anos, o trabalho não era fácil. A RARET apanhava com muita facilidade as ondas russas, uma vez que tinham uma enorme potência.

“Eram mais fáceis de sintonizar, pelo que o Sr. Pasqualino logo nos advertia de que estávamos numa frequência errada, a Rússia. Felizmente que ele ali estava atento, pois para o português médio, a fala russa é mais ou menos como as dos países de leste. Se não fosse a sua ajuda, certamente que iríamos retransmitir não a Rádio Europa Livre, mas sim os noticiários e propaganda russos. Seria, o que se pode chamar de ‘uma grande bronca’.”

“Agora qual era finalidade não sabíamos. Nós éramos técnicos, puramente técnicos, não estávamos envolvidos em políticas nem nada”, contou à SIC Aleixo Fernandes, engenheiro mecânico na RARET

Nesta época, as antenas estavam direcionadas para a Roménia, Checoslováquia (atual República Checa), Polónia, Hungria e Bulgária. Os programas chegavam de Munique, na Alemanha, para um centro de escuta na Maxoqueira, em Benavente, que as gravava ou reencaminhava para a Glória do Ribatejo. Os conteúdos eram imediatamente retransmitidos.

O tom era sobretudo persuasivo, mostrando aos ouvintes para lá da cortina de ferro como era maravilhosa a vida no mundo ocidental. Também havia transmissão de notícias censuradas e leituras de obras proibidas pelos regimes comunistas. A música também era outra rotina: à SIC, Aleixo Fernandes recordou que os discos de Amália Rodrigues eram dos mais populares.

Armando Oliveira, ex–técnico de serralharia da RARET, trabalhou desde o primeiro dia no complexo. Segundo o blogue “A Minha Rádio”, “no local eram recebidas informações ‘cozidas’ de acordo com os interesses do governo dos Estados Unidos.” Para ter a certeza que tudo corria nos conformes, o governo norte-americano tinha espiões nos países de Leste “que informavam os representantes da Glória se a emissão estava a ser ouvida correctamente.”

Quando os americanos criaram a RARET, achavam que a difusão de mensagens anti-comunistas seria suficiente para que os países para lá da cortina de ferro se revoltassem, em busca de liberdade. No entanto, os anos passaram e isso nunca aconteceu. “Todos os anos, todo o pessoal da empresa estava à espera de ser despedido, por já não ser necessário, mas lá se foram dilatando os prazos, de ano para ano, até se atingirem mais de 35 anos”, recorda Mário Portugal Bettencourt Faria, no blogue “A Minha Rádio”.

“Entretanto, o dinheiro dos Cruzados para a Liberdade acabou-se passado pouco tempo, mas o governo dos EUA resolveu patrocinar aquela iniciativa e assim, podermos aumentar a eficiência das nossas transmissões, cada ano com mais potência irradiada.”

Em 1960, já eram 12 os emissores de alta potência. Nesta década, a estação de rádio começa a crescer. Constrói-se a Escola Técnica, onde o ensino era gratuito e há salas de aula, laboratórios de química e complexos desportivos, uma piscina, um bar, uma área residencial para os funcionários deslocados e uma piscina. Também foi construído um posto médico e uma clínica, onde também havia uma maternidade.

Nesta altura, a RARET passa a transmitir programas em 18 línguas para todos os países sob influência da URSS.

Curiosamente, só na década de 60 é que a CIA e os serviços secretos norte-americanos reconheceram que eram os autores da RARET. Já na década de 80, mais precisamente em maio de 1985, uma pequena bomba explodiu perto do complexo de rádio RARET, na véspera da visita do presidente Ronald Reagan. Na altura, um funcionário disse à agência de notícias portuguesa que a explosão não provocou vítimas — apenas materiais. O ataque foi reivindicado por um grupo até então desconhecido, autodenominado grupo anti-capitalista e antimilitarista.

Nesse ano, também houve um grande investimento na modernização da Rádio Europa Livre. O posto recetor da Maxoqueira recebeu novos equipamentos de transmissão, mais modernos, e a Glória do Ribatejo teve direito a oito transmissores de 250 quilowatt.

Só que o fim estava perto. Em 1989, a queda do Muro de Berlim anunciava que estava para breve uma ponte entre os países comunistas e o ocidente. Em breve, a RARET passaria a ser totalmente inútil. Em 1995 o posto da Maxoqueira foi desativado, e um ano depois as instalações da RARET fecharam oficialmente. Dois anos depois, estavam completamente abandonadas.

O desfecho foi triste. O material de rádio foi oferecido à Junta de Freguesia da Glória, que o vendeu como sucata. Já as cerca de 60 mil bobines, gravadas na RARET, ficaram em Lisboa até 2001, altura em que foram enviadas para a Instituição Hoover, na Universidade de Standford, nos EUA.

Atualmente, existe um projeto de aproveitamento dos terrenos da RARET para construir um empreendimento turístico habitacional. São 70 vivendas germinadas, um hotel, uma academia de golfe e 233 lotes de pequenas quintas. No entanto, parece que esta ideia ainda está muito longe de acontecer. 18 anos depois, a rádio que os americanos construíram em Portugal na luta contra o comunismo continua esquecida.

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Gonçalo Gouveia, membro da página Lugares Abandonados e autor do projeto GG Photography, fotografou o estado de abandono da RARET em agosto de 2014. Carregue na imagem acima para as ver em pormenor.

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