Passaram-se apenas seis anos, mas parecem ter sido muitos mais. Na Escola Secundária Afonso Domingues, em Marvila, há cadeiras caídas no chão, vidros partidos e armários derrubados. Para trás ficaram cadernos de capa preta, testes de Inglês, quadros de ardósia e espaldares para ginástica. Só para enumerar alguns exemplos.
A Escola Secundária Afonso Domingues fechou a 23 de março de 2010, por ordem do Ministério da Educação, então tutelado por Isabel Alçada. O objetivo? Aproveitar aqueles terrenos para construir a terceira travessia sobre o Tejo. Encerrava assim uma escola com 131 anos de história.
A crise económica impediu o projeto de ir para a frente, mas a Escola Secundária Afonso Domingues nunca mais voltou a abrir. Seis anos depois, o estado de degradação é evidente. E os atos de vandalismo também.
Para percebermos como tudo começou, temos de recuar a 24 de novembro de 1884. Foi este o primeiro dia de aulas da Escola Secundária Afonso Domingues, na altura ainda se chamava Escola de Desenho Industrial Afonso Domingues — uma homenagem ao arquiteto Afonso Domingues, que projetou a traça original do Mosteiro da Batalha, entre 1388 e 1402. Nessa data, estavam inscritos 53 alunos: 16 nos cursos diurnos, de Desenho Elementar, e 37 nos noturnos, de Desenho Industrial.
As primeiras aulas foram lecionadas numa casa arrendada no primeiro andar no edifício número 3 na Calçada do Grilo. Menos de três anos depois, a escola mudou-se para o rés do chão de um palacete na Calçada da Cruz da Pedra, na freguesia de São João. Em 1897, abriu nas traseiras do Convento da Madre de Deus.
Nesta altura, já toda a gente conhecia a Escola Afonso Domingues. Os cursos de Desenho Elementar, Arquitetura e Máquinas eram os mais relevantes, no entanto também se destacavam as oficinas de pintura, carpintaria, serralharia e fundição. À época, a Escola de Desenho Industrial Afonso Domingues era procurada sobretudo pelos filhos dos operários da região de Xabregas.
José Saramago estudou nesta escola. Entre 1935 e 1940, o escritor e prémio Nobel tirou o curso de Serralharia Mecânica. Sem dinheiro para continuar no liceu, os pais enviaram-no para uma escola de ensino profissional.
“O mais surpreendente era que o plano de estudos da escola, naquele tempo, embora obviamente orientado para formações profissionais técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura”, escreveu Saramago na sua autobiografia, disponível no site da Fundação José Saramago
. “Como não tinha livros em casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro emprestado por um amigo, só os pude ter aos 19 anos), foram os livros escolares de Português, pelo seu carácter ‘antológico’, que me abriram as portas para a fruição literária.”Quando acabou o curso, Saramago trabalhou dois anos como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis.
Em 1948, foi decretado que a escola iria mudar-se para a Quinta das Veigas, em Marvila, atualmente Rua Miguel de Oliveira. O projeto ficou a cargo do arquiteto José Silva Costa, e previa a construção de três edifícios, com capacidade para mil alunos, distribuídos por 31 turmas. A escola ocupava uma área total de aproximadamente 20 mil metros quadrados e reabriu a 1 de outubro de 1956.
“Todos os dias vem aí malta assaltar isso”, contou à RTP um dos moradores em julho de 2012
Foi a sua última morada. Nesta altura, a escola tinha mais cursos, como de Eletricidade e de Condução de Máquinas. Em 1979, passou a chamar-se Escola Secundária Afonso Domingues.
Em 2009, os tempos áureos dos 840 alunos já eram. Nesse ano inscreveram-se 290 pessoas: 160 em cursos de educação e formação e 130 em cursos profissionais. As aulas eram lecionadas por mais de 80 professores. Mas até estava de cara lavada, depois das obras de requalificação em 2009. O ano letivo arrancou com o cheiro de tinta fresca, quadros interativos, computadores e wi-fi em toda a escola.
Não adiantou de nada — em 2010, encerrou de vez. A Refer queria avançar com a construção de uma linha de alta velocidade e da terceira travessia do Tejo, e para tal era preciso desabilitar a escola. E foi exatamente isso que aconteceu. Professores, funcionários e alunos tiveram até 31 de agosto para abandonar o edifício.
Em entrevista ao jornal “Público“, em julho de 2010, o Ministério da Educação revelou que não tinham sido constituídas turmas do ensino regular devido “à inexistência de procura”. Nos últimos dez anos, a escola tinha perdido metade dos alunos, sendo ainda de registar as “elevadas taxas de insucesso e abandono escolar.”
“Esta escola é o único curso nas redondezas, só há também Alverca, de laboratório. Este ano dizem que a escola vai fechar (…) eu estou preocupada com o meu segundo ano, porque eu quero acabar o 9.º ano e não sei em que escola é que vou acabar”, dizia na altura uma das aulas, conforme noticiou a SIC Notícias.
“Na nossa escola há pessoas de Odivelas, Amadora, Queluz, Mafra. Ir para Alverca é impossível, é muito longe, não vai dar para acabar o curso. Nós só queremos mesmo acabar o curso, acabar o estágio e depois vamos embora. Depois podem fechar a escola à vontade”, dizia outra estudante.
Na altura, o governo queria abrir ali a primeira linha do TGV, para ligar Chelas ao Barreiro. Problema: o projeto nunca se concretizou. Os concursos foram sendo adiados, até que finalmente o consórcio Elos ganhou a obra de execução do TGV. Parecia avistar-se a luz ao fundo do túnel, só que as obras nunca mais foram para a frente. A morte foi anunciada em 2012, quando o Executivo de Pedro Passos Coelho suspendeu o projeto. A fatura foi uma escola com 131 de história deixada ao abandono e uma dívida de 169 milhões de euros de indemnização ao consórcio Elos.
Durante estes avanços e recuos, a escola ficou esquecida. Exceto pelos ladrões. Em agosto de 2011, a Escola Secundária Afonso Domingues foi assaltada quatro vezes numa semana. Em julho de 2012, o saque continuava: “Todos os dias vem aí malta assaltar isso”, dizia um dos morados à RTP.
Na altura, a escola já teria assaltada dez vezes. Muitos mais vieram a seguir.
Em fevereiro de 2013, o Ministério da Educação disse à RTP:
“Não existe qualquer necessidade, ponderada a atual rede escolar, de reativar a escola. Está presentemente a ser estudada a (re)utilização das instalações da escola por uma entidade pública.”
Seis anos depois, o estado de degradação da Escola Secundária Afonso Domingues é evidente. As imagens que lhe mostramos a seguir foram tiradas por Duarte Madeira, da página Lugares Abandonados.
Recorde os artigos sobre o Palácio da Comenda, Aquaparque, Restaurante Panorâmico, Hotel Foz da Sertã, Sanatórios do Caramulo, Águas de Radium, Presídio da Trafaria, Pavilhão Carlos Lopes e Mosteiro de Seiça, todos abandonados.
Carregue na imagem acima para ver as imagens do antes e depois da Escola Secundária Afonso Domingues.