Na cidade

A vida da heroína açoriana Brianda Pereira também dava um filme da Netflix

Luís Filipe Borges recorda o papel da mulher que se tornou um símbolo e uma inspiração para os terceirenses.
É um ícone dos Açores.

No dia 13 de fevereiro de 1582, Ciprião de Figueiredo, corregedor dos Açores, enviou uma famosa carta a Filipe II. Na missiva, Ciprião recusava a cedência de poder aos castelhanos e concluía, escrevendo: “Antes morrer livres que em paz sujeitos”, frase que se tornou o lema dos Açores e do povo local.

Pouco antes, uma armada espanhola tentara a primeira conquista do território atlântico. Escorraçados na Baía da Salga, mil soldados de Castela acabaram por tornar-se nos atores secundários da batalha que fez nascer o mito de uma mulher heroica.

Brianda Pereira, provavelmente nascida na cidade de Angra, ou alternativamente, no Porto Judeu (então concelho da Vila de São Sebastião). Conforme a tradição popular, filha de Álvaro Anes de Alenquer e de Maria Pereira de Sousa. O pai foi juiz ordinário da Câmara de Angra em 1553 e descendia de Pero Anes de Alenquer, um dos primeiros povoadores da ilha Terceira e, tal como a mãe, tinha ascendentes nobres.

Casou com Bartolomeu Lourenço, indo residir para o vale da Salga, na zona litoral do Porto Judeu — na Jurisdição do extinto concelho da vila de São Sebastião, onde o casal era dono de terras e tinha uma abastada casa agrícola.

Aí residiam, quando, a 25 de julho de 1581, no contexto da luta entre partidários de Filipe II de Espanha e de D. António I de Portugal (Prior do Crato), se travou na baía da Salga, em cuja arriba se situava a casa do casal, a batalha da Salga.

No Porto Judeu, Brianda Pereira deu o nome a uma das escolas (no Caminho da Cidade, desta freguesia, hoje extinta) e a uma das sociedades recreativas — Brianda Pereira — com banda filarmónica e teatro.

Monumento a Brianda Pereira, na Baía da Salga, hoje uma das mais conhecidas zonas balneares da ilha Terceira.

“Vivia ali um Bartolomeu Lourenço com mulher e filhos; a mulher andava em corpo, sendo mulher nobre e moça, e seu marido, lavrador rico entre a gente da terra, dizendo que ela fugira de entre as mãos deles [os soldados do partido espanhol] cuidando que seu marido fizera o mesmo, e que o já tinham cativo ferido, fugindo um seu filho que o viera contar. A pobre mulher andava como doida, e os soldados da armada de posse de sua casa e de toda a sua fazenda […] Quando a pobre mulher viu arder a sua casa e os frescais da eira, e seu marido cativo e ferido, e sua casa e fazenda em poder dos soldados, e ela com pressa em saia escapou, parecia uma doida e com as lástimas que dizia animava os portugueses para que melhor pelejassem, e a tinham por mão porque se queria ir meter em sua casa: e porque era moça e nobre e bem parecida, e mulher muito galharda, sem falta sua honra e vida por resistir seria acabada”, escreveu um autor anónimo.

Já Francisco Ferreira Drumond disse em “Anais da Ilha Terceira”: “Onde se achava, e ainda existe, a quinta, ou casa, de Bartolomeu Lourenço, lavrador abastado, que nela vivia com sua mulher Brianda Pereira, moça nobre e assaz formosa, da qual tinha filhos”.

E acrescenta: “Parece que a sua beleza fôra nos dias antecedentes objeto da curiosidade dos castelhanos, porque foi o primeiro despojo que eles quiseram saquear de sua casa. Felizmente pôde esta nova Lucrécia escapar-se às mãos dos soberbos Tarquínios que a pretendiam, e já levavam prisioneiro ao marido, a quem haviam ferido gravemente, e a um filho; e achando-se já senhores da casa, e de tudo que nela havia, saqueavam, destruíam e convulsavam à sua vontade todos os móveis, chegando finalmente ao excesso de largarem fogo aos frescais de trigo que estavam na eira”.

Por sua vez, José Joaquim Pinheiro, escreveu em “Épocas Memoráveis da Ilha Terceira”: “Mostrou o seu ânimo varonil, armando com dardos as mulheres que tinham corrido à peleja com seus maridos e filhos, e persuadindo com argumentos de virtuosa esposa e mãe desvelada a gente terceirense, leva as do seu sexo a carregarem sobre o inimigo com tal denodo que puderam alcançar a salvação do prisioneiro ancião e de seu filho, ambos bastante feridos. Só não pôde esta heroica espartana evitar o incêndio que lavrava na casa e na eira”.

Tudo começara com sementes plantadas poucos anos antes

Quando D. Sebastião morreu em 1578, em Alcácer Quibir, sucedeu-lhe o seu parente mais próximo, o tio-avô Cardeal D. Henrique, que morreu, em 1580, sem herdeiros diretos, abrindo, assim, uma crise de sucessão. Houve 3 principais herdeiros, D. Catarina, Filipe II de Espanha e D. António, Prior do Crato.

Este último foi aclamado rei em Santarém, contra a vontade da Alta Nobreza, apoiantes de Filipe II. Para este, Portugal era um reino muito importante para a estratégia do Império Espanhol, razão pela qual acabou por enviar o seu exército que, mais bem preparado, venceu os apoiantes de D. António — O Prior do Crato.

António acabou por refugiar-se na Terceira, o único ponto do país que ficou do seu lado. D. Violante do Canto, que herdara uma grande fortuna em 1577, apoiou a causa de D. António, sustentando as tropas anglo-francesas estacionadas na ilha. A Terceira passou a ser, então, alvo das atenções espanholas.

A partir deste momento, a história e a lenda misturam-se, sendo a realidade dos factos difíceis de decifrar. Mas algo é absolutamente certo: Brianda tornou-se um símbolo e uma inspiração que dura positivamente até hoje e integra, seguramente, o ADN local duma ilha que é pelas restantes conhecida como “terra dos bravos”.

A vitória na Batalha da Salga permitiu o reanimar das tropas terceirenses e o fortalecimento da sua posição contra o Rei espanhol. Bateram-se como defensores da independência de Portugal.

Só em 1583 a Terceira foi subjugada pelos espanhóis, comandados por D. Álvaro de Bazán, no conhecido Desembarque da Baía das Mós. Apesar dessa situação, Angra continuava a ser um ponto geoestratégico fulcral. Assim, por proposta do próprio Bazán após analisar a linha de Fortes da Ilha, Filipe II mandou erigir um grande castelo no Monte Brasil. Nascia assim a maior fortaleza filipina do mundo, chamada na época de Castelo de S. Filipe, hoje São João Batista. Um castelo que, ao invés de proteger a cidade, protege os invasores dessa mesma cidade através duma longa fortificação que rodeia a península do Monte Brasil (perfeitamente conservado até hoje).

Algumas curiosidades finais: os touros, que hoje acompanham a heráldica dos Açores, relembram-nos o papel do gado bravo e do povo terceirense na luta pelo que acreditavam. A bravura passou a ser a imagem de marca da Ilha. Note-se que, numa peculiar alusão ao nome do comandante espanhol que enfim dominou a Terceira, não haverá (ainda hoje) maior insulto na ilha do que chamar “bazão” a alguém.

A raiz da histórica rivalidade entre Terceira e São Miguel (a maior e mais populosa ilha açoriana) estará inclusive neste ponto da História – em que os segundos viram na sua não oposição ao regime filipino a oportunidade de poderem passar a ser o centro de domínio administrativo do arquipélago.

Assim, e durante cerca de dois anos de resistência, a Terceira foi a capital do Reino e único território nacional livre do domínio filipino, sendo rei de Portugal D. António, Prior do Crato.

Se não está aqui uma grande série ou filme à espera da aposta e investimento de uma Netflix desta vida, vou ali dar um mergulho na Salga e já venho.

Cerveja artesanal com o nome da heroína, disponível em muitos estabelecimentos da ilha.

And now, for something completely different

Com sorriso de menina e quase 90 anos, uma memória fotográfica do terramoto de 1980 e uma história de emigração pelo Brasil, Hedviges Albuquerque ilumina qualquer conversa e qualquer fotografia, mesmo que a preto e branco.

A antiga proprietária do restaurante Colunas sabe do sentido da vida e como partilhá-lo, serena e humildemente, junto ao mar tranquilo de Santa Cruz. Para a conhecer melhor, pode assistir ao quinto episódio de “Caixa Negra: Arca de Memórias Açorianas”.

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