Na cidade

Embaixada Açores: o manifesto anti-visitas indesejadas ao arquipélago

Na nova crónica de Luís Filipe Borges, o realizador crítica as pessoas que vão para os Açores à espera que seja as Caraíbas.
Mais um episódio da Embaixada Açores.

Caro potencial visitante, colocai os olhinhos neste texto.

Somos 9 ilhas, 68 ilhéus, temos 66 lagoas, ainda não contei as cascatas, apresentamos 12 graus na pior noite de inverno e 27 na melhor tarde de verão (aquecimento global à parte), com água do mar a variar entre os 15 e os 25 graus (em tempos recentes, e por causa de andarmos a lixar o planeta, a chegar perto dos 30); porém, se achas que vens para as Caraíbas, poupa-te a despesa e o trabalho, não te queremos aqui.

Fundámos 17 cidades no Brasil, pelo menos uma no Uruguai, temos mais de um milhão e meio de congéneres nos EUA e Canadá, uma história de quase 6 séculos, feita de povoadores e não colonos, com qualquer coisa como 233 fortificações militares; estivemos ao lado dos Aliados nas duas Guerras Mundiais e a cultura é o bem mais procurado online nas pesquisas relativas aos Açores — logo após a natureza e acima das nossas gastronomia e vinhos. Portanto, se a tua ideia de férias é um hotel com pulseirinha e tudo incluído, enquanto bebericas tequilas sunrise aguadas numa piscina com a mesma percentagem de cloro quanto de urina avulsa, não te queremos aqui.

Não há um sotaque dos Açores, mas um sem fim de pronúncias, às vezes, muitas vezes, dentro da mesma ilha. Sim, São Miguel é a maior e mais populosa, portanto, é natural exisitirem mais pessoas com aquela melodia deliciosa que envolve tons afrancesados, o que tem a ver com os aliados belgas de Portugal na era do povoamento. Mas, se vens todo lançado para pedir a um faialense ou a um florentino, ou a um picaroto que “faça o sotaque”, como se fosse o teu macaquinho de circo pessoal, podes dar meia-volta e corda aos sapatinhos, não te queremos aqui.

Se achas que Cancún é que é, se perguntas em tom jocoso e alarve se há carros e multibancos no Corvo, se as melhores férias da tua vida foram num 4 estrelas de Varadero porque a lagosta vinha ao preço da uva-mijona, se não reciclas, se a última vez que leste um livro foi na escola primária, se usas plástico com a mesma frequência com que uma influencer tira fotos num elevador, se a mera menção da palavra ‘trilho’ provoca-te cãibras, se a disciplina de História sempre te deu seca, se o teu conceito de atividade ao ar livre é jogar Playstation no quintal, poupa o teu e o nosso tempo, não te queremos aqui.

O mar açoriano é mais de 400 vezes a área terrestre das ilhas e todos temos obrigação de ser sentinelas dele. 30 por cento da Zona Económica Exclusiva Europeia é mar dos Açores (57 por cento da portuguesa). A nossa companhia aérea supera a idade da TAP, somos um ponto geoestratégico de relevo há mais de cinco séculos, desde o porto de Angra do Heroísmo até ao controlo do tráfego aéreo do Atlântico Norte — a partir de Santa Maria; passando pela Base das Lajes, claro, e pela Horta dos cabos submarinos, hidroaviões e primeiro consulado norte-americano no estrangeiro, a mais pequena cidade cosmopolita do mundo, de finais do século XVIII até ao primeiro quartel do século XX.

Maneiras que se vieres com perguntas chico-espertas relacionadas com a temática “Afinal os Açores contribuem com o quê?” é provável que te sejam aconselhadas experiências como ‘brincar com a pombinha na areia’, ‘pregar um clâme num ôlhe’ ou ‘digerir blicas fritas com molho de naião’, uma especialidade local.

Nos Açores há registo de 120 desastres naturais só desde o povoamento até à autonomia (1976). Autonomia significa que temos administração própria, não que somos independentes ou que pretendamos tal. Portanto, evitem dizer coisas como “Isto é mais verde do que Portugal”, “Com que frequência vão a Portugal?” ou “Já volto a Portugal depois de amanhã”. Somos portugueses, sim senhor, oriundos de gente algarvia, alentejana, lisboeta, nortenha, e de belgas flamengos e franceses (chamava-se, à época, Flandres, e era um grande aliado do nosso país que tinha, então, apenas um milhão de habitantes. Daí termos tantos apelidos curiosos como Goulart, Dutra, Simas, Cota, Decq, Sieuve, etc., etc., etc.). 

Faial.

Não sendo independentes, não temos capital. Por isso, por favor, evitem essa parolice de chamar a Ponta Delgada a capital dos Açores ou chegar, por exemplo, às Flores (já vi isto em peças jornalísticas, inclusive) e apelidar Santa Cruz de ‘capital da ilha’. Capital, e do reino, só houve uma — Angra do Heroísmo, e já agora por duas vezes. Na luta pela determinação de Portugal após a morte de Dom Sebastião e na batalha contra o absolutismo.

Somos, se quiserem, “Portugal com Tomates”. Além do registo dessas referidas intempéries, sismos, erupções, derrocadas, tempestades, cheias e abatimentos, há muitos açorianos vivos que se lembram do último vulcão a explodir (Capelinhos, Faial) e do último grande terramoto (1980, ilha Terceira, com impacto noutras ilhas). Olhem, para não ir mais longe, eu, por exemplo. Tinha 3 anos quando a casa em que vivia com os meus pais desabou, e lembro-me perfeitamente do pedaço de teto que caiu a centímetros da cabeça, esmagando-me o brinquedo favorito — que recebera, uma semana antes, pelo Natal. Maneiras que é de evitar virem para aqui armados em carapaus de corrida. Optem antes por Ayamonte ou Badajoz. Estão bastante mais habituados a bimbos.

Somos 9 ilhas, 6 cidades, 19 municípios, 155 freguesias e toda uma diáspora. Somos orgulhosos, perseverantes, festivos, e não — não está sempre a chover. Temos mais de 500 espécies endémicas, os dois primeiros Presidentes da República, a maior taxa per capita de músicos entre a população, mais de 200 irmandades do Espírito Santo e um sentido de humor corrosivo, que celebra o estarmos juntos hoje e a suprema importância de festejá-lo agora, porque aprendemos na pele que nunca se sabe que possível tragédia acontecerá amanhã. 

Por isso, se caminhas, lês, se abraças a contrariedade e te encanta o imprevisto, se a natureza te deixa comovido e humilde, se te interessa o espírito e a cultura específica de um lugar, se as tuas perguntas são curiosas e não retóricas, se cresce em ti a vontade de conhecer cada uma das 76 fajãs de São Jorge, subir o Pico ou descer a Furna do Enxofre, na Graciosa, serás tão bem-vindo que às tantas até te tornas um de nós. Há, por exemplo, 14 nacionalidades diferentes a conviver na ilha das Flores (em menos de 3600 habitantes), ponto mais ocidental da Europa. Sim, Zé das Iscas, as Flores. E não o Cabo da Roca.

Nemésio afirmou que, aos Açores, define-nos tanto a História quanto a Geografia. Nascemos e crescemos lado a lado com uma avassaladora beleza que nos enterrará a todos. Fazemos questão de não a tomar por garantida. Somos o primeiro arquipélago do mundo certificado como destino sustentável pela Earth Check. De modo que, se poluíres, não te queremos aqui. 

Se gostas de vir num mastodonte flutuante com mais 4000 pessoas, fazer uma visitinha de médico à volta da doca, ver montras na marginal e voltar para o conforto climatizado do buffet ambulante de bactérias diversas, não te queremos aqui. Se visitaste São Miguel e depois contas a toda a gente e postas que “conheces os Açores”… perdoamos-te, se voltares. 

Açores é plural da ave de rapina Açor. Conhecer o arquipélago é, lógica e obrigatoriamente, viajar no plural. Seja então bem-vindo quem vier por bem. O meu nome é Luís, identifico-me como Açoriano e os meus pronomes são Geografia e Natureza, Cultura e História.

Fale comigo

Tem dicas sobre spots açorianos que merecem atenção? Vistas deslumbrantes e menos conhecidas? Pessoas que vale a pena conhecer? Gostava de sugerir uma história à Embaixada dos Açores ou contar um episódio hilariante sobre malta de fora que tentou apanhar o metro, achou que tinha de nadar até à próxima caixa multibanco ou estava convencida de existir um rio em São Miguel? Envia um email para embaixadadosacores@nullnit.pt.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT