Na cidade

Embaixada dos Açores: “Um eco dum fantasma feliz” na hora de abrir os presentes

Na rubrica desta semana, Luís Filipe Borges recorda uma pessoa especial que partiu e fala sobre a saudade do tempo roubado.
Um conto de Natal.

A poucos dias do Natal, e com votos sinceros de uma quadra magnífica a todos os leitores, uma Embaixada diferente do habitual. Um conto melancólico de Natal — especialmente a pensar em amigos que já não estão cá, pelo menos não para abrir presentes.

Era só uma travessia simples, piloto automático. Café tomado e curta distância até ao carro. Mas fui interrompido a meio do tapete verde daquele jardim. Que terão pensado os convivas na esplanada ao ver um homem de meia-idade paralisado com os olhos no chão?

A árvore restante cativou-me. Só um coto, aquela nesga de madeira assente em raízes, o pedestal onde outrora habitou um ser completo. E ao seu redor dezenas largas de pétalas dum roxo suave. Não sei que flor. Um quadro natural, uma pequena beleza trágica. E lembrei-me de ti. Agachei-me para tocar nas linhas circulares, um pouco mais de altura e poderia sentar-me com algum conforto. Na verdade, poderia tê-lo feito ainda assim — mas duas lágrimas envergonharam-me.

O que restava da árvore como metáfora de ti. Teriam acabado de a cortar?

A multidão de pétalas — como numa manifestação contra a tua ausência, ou atraídas para ti tal qual no tempo em que foste vivo. Uma semana depois fez anos da tua morte. 15. Voltei ao jardim contíguo a um café de algazarras, mesmo nos dias correntes. Máscaras a ameaçar voar do tampo das mesas como andorinhas feridas numa asa. E seria capaz de jurar que as mesmas frágeis personagens violeta, no exato número de há oito dias, continuavam à volta do tronco. Não faz sentido, mas assim foi.

Há década e meia houve acontecimentos semelhantes nos dias posteriores. Durante 4 noites consecutivas, o mesmo astro no mesmíssimo ponto do céu chamou pela minha atenção durante o último cigarro antes de me deitar. Estrela, planeta, supernova, tanto faz.

A rosa-amarela (desta flor sei o nome) que trouxe para casa após o teu funeral continuou pujante durante um mês, até escurecer dum dia para o outro como se possuísse interruptor e um intruso lhe tocasse. A Carolina viu uma “luz branca” no nosso quarto, quando chorei compulsivamente pela última vez, tinhas sido morto há 72 horas. Não faz sentido, mas assim foi. Choque, tristeza, raiva, resignação, vingança, dor — aquela normalmente descrita como a de um membro amputado — aceitação; essas, sim, são fases lógicas (e por todas passei, e repeti).
15 anos sem Natais e aniversários, sem teres ao teu colo a Miriam e sem qualquer reação a um daqueles momentos bipolares do nosso clube. Lembras-te? 15 anos desde que a mãe ligou com a voz de outra pessoa (não faz sentido, mas assim foi) e disse: mataram o teu pai.

Carvalho, pinheiro, araucária, a groselha no pátio da infância, criptoméria, azinheira, sobreiro, chorão. As árvores da aldeia do avô e aquela despensa que ele transformara em gabinete privado para os seus livros proibidos e os rádios velhos que desmontava contigo e depois com o neto. Passagem de testemunho onde a ternura é igual e só se acrescenta de cãs grisalhas, como traje a rigor para uma gala inevitável.

Aquelas férias em que viajámos num comboio noturno não sei de onde nem para onde, e a mãe dormia, e tu achavas que nós também, mas o Miguel ouviu-te conversar com um companheiro de ocasião na carruagem sobre filhos preferidos — mas não apreendeu a conclusão. O dilema perseguiu-nos durante o resto da infância, talvez nos tenha feito especialmente competitivos, talvez explique qualquer coisa sobre hoje.

Ou porventura tiveste filhos prediletos no mundo todo enquanto nele orbitaste, no trabalho, na bola, naquelas pescarias regulares de três dias, nas árvores que o avô plantava e onde construíste casas de madeira, o pó ao pó e a madeira sobre madeira, e, por isso, quando morreste tínhamos mais rostos desconhecidos à nossa volta do que nunca, mas caramba, pai, com as mesmas rugas, lágrimas, feições desfiguradas que nós. Não sei onde arranjaste tanto amor, onde o foste colher, todavia presumo que esse conceito abstrato seja irmão do tempo e filho da memória. Plantaste. Isso é certo. E merecias, no mínimo olímpico dos horrores, ter sido morto por algo que valesse a pena: um marido corno, uma descoberta perigosa, a defesa dum inocente, uma mentira terrível, um defeito de carácter por desvendar, um segredo daqueles clichés — dos que se levam para o túmulo, qualquer merda exceto uma tentativa de assalto em hora de ponta a que decidiste resistir porque adoravas a porcaria do carro. Não faz sentido, mas assim foi.

Tenho 44 agora, Sr. Linhares, e continuo a precisar da tua ajuda. 44 deste empréstimo de ossos e a Miriam com 13 e a Carolina ainda com o mesmo sorriso aos 41 com que me deixou sem fôlego aos 19. A mesma obsessão por números como se uma indecifrável lógica matemática colocasse porventura uma infinitesimal ordem no caos. Já não viste pandemias nem o crescimento da extrema-direita que nos ensinaste a abominar.  Já não testemunhaste a tendência obsessivo-compulsiva do teu mais novo para contar quantos camiões vermelhos vão passar na rua vislumbrada desde a vidraça desta sala de reuniões até enfim um qualquer todo-poderoso decidir atender a minha marcação. São, como dizias, vultos de corredores que nunca percorreremos.

E um dia destes, mais década menos década, terei a tua idade e menos pétalas violetas roxas lilás magenta grená à minha volta.
Porém, contudo, mas, no entanto, sei que sou cada vez mais tu.

Talvez no recato de 4 paredes porque a tua sombra fez-me tímido. Mas nessa penumbra doce do lar leio os mesmos livros, danço com arrasto, canto para a Miriam como tu fazias para a mãe, a Carolina diz que a gargalhada é igual, um eco dum fantasma feliz, e de repente a frase que mais me irritava quando a dizias num encolher de ombros — “é a vida” — ganhou finalmente sentido.

Tu estás no meio de nós.

Sim, sei que esse arranjinho entre ateu e católica funcionou sabe-se lá por que artes atrevidas e que, no respeitante à descendência, o teu pragmatismo ganhou. Mas é o que sinto, pai. Ressonâncias tuas, misticismo de vão-de-escada, otimismo galopante à laia dum empreendedor de sucesso, seja feita a sua vontade.

Estás aqui. E não seria isso a suprema ironia? O homem que sempre disse: “Se todos os dias durmo oito horas e nesse tempo não tenho qualquer consciência de mim mesmo, por que diabo será a morte um caminho para outra coisa qualquer?!” Não seria um karma com sentido de humor filho-da-mãe se agora estivesses numa dimensão paralela a encolher ombros e a clamar “É A VIDA” antes de rires, tonitruante como uma sirene dos bombeiros?

Porque podem ter-te decepado tronco e arvoredo, pai, mas as raízes estão por todo o lado — e as pétalas que nasceram na ponta dos teus ramos continuam a cair à volta. E a permanecer. 15, 8, 44, 19, 13, 41, 4, 72, 3. Fé.

Não faz sentido, mas assim é.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT