Ilha Terceira, território fundamental na história do país, seis séculos de história, uma cidade nascida quase em tempo recorde. Primeiro apenas Angra, centenas de anos mais tarde acrescida “do Heroísmo”, por duas vezes capital do Reino. A outra cidade, no início, era somente Praia, mas a história e o carácter terceirense a fazerem-na merecer a denominação épica — “da Vitória”.
A primeira, o mais antigo município atlântico, é ainda e também Cidade Património Mundial. Em Portugal, nos mesmos termos, existe apenas outra (por sinal irmã, geminada), Évora. De resto temos locais específicos, como o centro histórico de Sintra, mas não urbes inteiras assim reconhecidas pela UNESCO.
Este interlúdio serve apenas para brevemente começar a descrever o porquê da chamada “Terra dos Bravos” ser tão particularmente especial, numa palavra: única. Nós sabemo-lo. Está na altura dos de fora saberem mais, saberem também.
No ADN terceirense, bem como no açoriano em geral, estão tradições e ritos que sobrevivem ao tempo, com origens no Portugal arcaico ou simplesmente criadas por um povo fustigado por séculos de isolamento, distância e perigos naturais — de vulcões a terramotos.
Na nossa necessidade por um amigo divino, preservámos o Espírito Santo até hoje, em rituais perfeitamente profanos aos quais soubemos dar a mão à fé (o padre está presente, faz parte, é integrado… mas não manda). O terceirense canta ao desafio, dá comida aos pobres, faz foguetes e cria quintos touros que só ele vê, enfrenta as ondas em barcos que batizou com carinho, recolhe no mato as flores que fazem tapetes esplêndidos como nas celebrações da Agualva, coreografa bailinhos, toureia de guarda-chuva, pinta as suas cidades, as suas freguesias, dança em ruas eternas de arquitetura colonial, recebe dezenas de nacionalidades, mantém-se aberto ao mundo desde sempre, jamais deixando de ser fiel a si próprio.
O povo faz a cultura
Tece, borda, costura, cozinha, preserva, ilustra, esculpe, escreve, desenha, planeia, em mais simples ou mais intrincados processos que passam de geração em geração, do avô que ensina o neto na lavoura, ao pai que pesca com o filho, das artes femininas do bordado, ourivesaria e cerâmica, do artesanato profundamente popular aos novos artistas cosmopolitas — que desenham malas para o mundo cosmopolita ou tábuas de servir com motivos locais. Do mais rural ao totalmente moderno. De compositores a comediantes que, de dia, têm empregos “normais”, e à noite são os “Fala Quem Sabe”.
Está na hora de registar essa fusão de antigo e novo, de criação eminentemente popular, transversal a todos, novos e velhos, da cidade e do campo, tradicionais ou empreendedores.
Vitorino Nemésio (natural da Praia da Vitória) cunhou a açorianidade e Raúl Brandão leu-nos na perfeição enquanto portugueses, sim, mas especiais. Quase seis séculos de ADN sujeito ao isolamento e à intempérie, à distância e à catástrofe natural, cunharam um espírito comunitário singular, um cocktail intenso de sagrado e profano em doses iguais, e como tal suscetível de produzir frutos culturais, etnográficos e sociológicos sem comparação ao nível do país inteiro.
A nós, voltando a Nemésio, molda-nos tanto a geografia como a história. Temos a população mais musicalmente instruída da nação e uma produção de artistas por quilómetro quadrado a todos os títulos notável, quiçá insuperável. O mar define-nos tanto quanto terra e céu, somos — como na máxima de Oscar Wilde — almas que, como todas as outras, vivem na sarjeta, mas temos os olhos postos nas estrelas. Talvez o confronto permanente com a colossal beleza das ilhas nos motive a criar peças que sobrevivam a nós. Tal como essa beleza natural toca na imortalidade, a arte também a pode alcançar.
Todavia, também somos alvo de discriminação, de preconceitos antigos, tratados pela Lisboa centralista quase sempre como portugueses de segunda e, no que diz respeito à cultura, temos extraordinária dificuldade em saltar os muros do gueto onde nos encurralaram. Quem, no continente, saberá quem foi o maestro Francisco de Lacerda ou quem é o jovem cantautor contemporâneo Felix the First? Quem conhecerá a obra de Madalena Férin ou saberá que Armando Cortes-Rodrigues era açoriano? Nomes da nossa literatura como Vamberto Freitas, Urbano Bettencourt ou João Pedro Porto chegam mais depressa à margem americana do Atlântico, ou ao sul do Brasil do que à capital madrasta, tutora distante e desinteressada.
É urgente que os poucos açorianos com notoriedade nacional continuem o seu labor em prol do desenvolvimento e divulgação da Cultura das ilhas. Augusto Fraga, com o êxito “Rabo de Peixe”. Sara Cruz, Maior Talento do Ano (2019) numa votação precisamente levada a cabo pela NiT. Diogo Rola, realizador de 32 anos com 41 prémios internacionais. Lúcia Moniz, uma carreira consolidada como atriz, cá e lá fora.
Aqui, na Embaixada dos Açores, procuraremos ao longo de 2025 continuar humildemente a honrar o Património Cultural açoriano e, a cada oito dias, dar a conhecer um pouco mais sobre história, agentes culturais, eventos, datas relevantes, ideias, rituais, artes diversas — diretamente dos Açores para o resto de Portugal, em rede, com um enorme potencial de partilhas, e os amantes dos Açores espalhados pelo mundo como destino natural.
And Now for Something Completely Different
“CAIXA NEGRA – Arca de Memórias Açorianas” mereceu apoio da Sociedade Portuguesa de Autores, foi um dos vencedores nacionais do Caixa Cultura, iniciativa extraordinária da Caixa Geral de Depósitos, teve parceiros da Região Autónoma dos Açores que muitos nos honram, vai em cerca de 150 mil espetadores só nos streams do Facebook da RTP Açores, está disponível na RTP Play, a ser emitido na RTP2, em breve pelo mundo na RTP Internacional, mas talvez nada nos tenha honrado mais do que a absoluta surpresa que foi — na primeira edição dos Prémios do Audiovisual Açoriano — recebermos o galardão de melhor série açoriana de 2024.
Este prémio pode não valer o seu peso em ouro, mas enche-nos a alma e alimenta o coração para bater por mais. Obrigado.
Com o assíduo leitor deste espaço ficam apenas três episódios em falta desta nossa homenagem à 3.ª Idade açoriana. Deixo-vos o antepenúltimo, com Helena Ávila — a nossa protagonista na ilha do Pico.
Numa tarde soalheira nas Lajes do Pico, Helena Ávila ilumina-se quando a convencemos a sentar-se ao piano e a dedilhar o seu primeiro amor. Da filarmónica à família, da fé ao que foi e já não volta, toda ela é sabedoria humilde, coração largo, música permanente, tristeza que se sacode.