Há muito tempo que não me encontrava sozinho e com tempo na ilha. Uma carta de alforria para ir uma semana inteira na tentativa de suspender o tempo, algo suscetível de acontecer em certos contextos desde que se reúnam insularidade, melancolia e memória. Os meus pais estão velhinhos e doentes — e o diminutivo, que usamos (desconfio) para afastar o medo, só chega para um destes adjetivos. Circulamos nos corredores da casa sem falar do elefante na sala, o monstro hediondo, o ceifador, aquele com quem se negoceia numa sala de reuniões sem janelas nem relógios e na qual a mesa está sempre inclinada contra nós.
O meu irmão chega do Continente (de “Lá Fora”, como qualquer açoriano diz) e, outra raridade, eis-nos juntos na casa de família por coincidência e ao fim de tanto — demasiado — tempo. Lanço-lhe um convite sem grande fé: se quer vir comigo fazer um trilho, algo em que sou 100 por cento noviço, mas ele é experimentado. Ainda por cima são as Frechas da Agualva, que o Alexandre bem conhece e não constitui grande desafio. Aceita. E pese embora não falemos disso, creio que há um entendimento tácito, mesmo telepático: não haverá muitas mais oportunidades na vida de fazermos um programa de irmãos, pelo menos daqueles a quem se possa depois contar a história em casa. “Na” casa.
A proposta chegou por intermédio do Ivo Silva, guia turístico e responsável pela Terceira Tours, com quem nos encontramos de manhãzinha no parque de estacionamento junto à Praça de Touros de Angra do Heroísmo. Esperava trocar umas palavras de circunstância com um par de franceses, talvez um americano em busca das suas raízes atlânticas, mas não. A soberba carrinha do Ivo está integralmente à nossa disposição, bem como, e mais importante, o conceito de Slow Tour.
Ele tem um plano daquilo que nos quer mostrar, mas todas as sugestões são mais que bem-vindas. “Tenho tours que arrancam como hoje às 8 da manhã e acabam às 19 horas, e outras que acabam a incluir jantar e seguem noite dentro”. Cinco minutos de viagem a caminho da Agualva e já temos absoluta certeza de que estamos a falar com um amigo.
Foi preciso chegar aos 47 anos para descobrir que existem cascatas na minha própria ilha. Melhor ainda foi tê-lo feito no nosso tempo, parando durante quanto dele nos apetecesse e — pormaior de orgulho para um desastrado nato — sem me ter esbardalhado uma só vez. Sou, regra geral, um filão involuntário de slapstick comedy. Apontem-me a câmara e terão dinheiro em caixa garantido; e este vosso escriba, no mínimo, dores nas articulações. Escorrego e caio na minha própria casa; e já são tantos os malhos ocorridos em gravações que há membros da equipa técnica que assinalam com brindes, no final de um dia de rodagem, o facto de não ter caído, pisado um Lego ou pontapeado uma quina de mesa que seja nas anteriores 24 horas.
Penso (e desculpem desde já a lamechice), seguramente com a alma da minha criança interior, a que nasceu e cresceu neste território, que terá sido sortilégio da ilha, uma bênção desta natureza descoberta que sempre cá esteve e com a qual — pasmo — só agora interagi. Falamos sobre isso no pausado café que bebemos com gosto numa Associação Recreativa sita na Agualva, pouco após termos dado com um robusto solar anterior à fundação da primeira urbe atlântica (Angra), no qual, diz-se, o bispo de então — há cerca de 500 anos — praticava as suas escapadinhas… Longe dos olhares dos futuros angrenses e quiçá, na cabeça dele, longe também dos juízos impiedosos de Deus e do Diabo.
A seguir, instigados por este insólito verão (para o contexto ilhéu), um mergulho na Fajã do Fisher revigorou-nos e abriu o apetite para uma excecional Telha de Polvo no Rocha (Porto Judeu) — com varanda, terraço e vista para os sempre peculiares Ilhéus das Cabras (entre os quais nadei um dia, noutra vida, quando havia mais cabelo e menos temores).
De tarde, o Ivo reservou-nos a visita a uma plantação de café gerida por um casal de antigos emigrantes, onde o típico empreendedorismo norte-americano e a tradicional resiliência açoriana dançam em perfeita harmonia e zero risco de calos. Sim, café. Nos Açores tudo é possível — exceto trazer uma tonelada dele para o Continente (que a TAP, presumo, não me autorizaria). Após o inevitável rodízio de licores caseiros que a hospitalidade açoriana sempre implica, ainda visitámos a Olaria de São Bento, um vestígio vivo e muitíssimo bem-sucedido do tempo em que os homens metiam literalmente as mãos na massa e sabiam fazer coisas de raiz. Deixou-nos honrados e humildes, remetidos ao uso exclusivamente digital dos nossos dedos néscios que procuraram somente tirar as melhores fotos possíveis para o faz de conta das redes sociais.
Terminámos o dia com sincera pena, mas abraçados a uma ideia renovada de genuíno. O meu irmão com um jantar antecipadamente marcado e eu ansioso apenas para chegar à casa da infância com aquele mesmo entusiasmo pueril de outrora: “Mãe, pai, sabiam que há cascatas na ilha? E que plantamos café? E que há uma olaria ainda a trabalhar muito bem?” E… E… E.
Incidente Diplomático
Esta rubrica regular, a que o leitor poderá já se ter habituado, teve até aqui como critério costumeiro as diversas manifestações de ignorância (ou preguiça) dos media nacionais relativamente aos Açores — onde nomes são trocados, ilhas são inventadas, paisagens de uma surgem a engalanar referências a outra, ‘capitais’ são referidas e nomeadas, etc. Mas ao menos, honra lhes seja feita, os Açores (ou “a ilha” dos Açores) existem nesse rol de equívocos que amiúde grassa nos OCS portugueses.
Bastante pior é o demonstrado pela imagem seguinte, logo por ironia num programa intitulado “GPS”. Bem podemos franzir o sobrolho, colocar lentes progressivas, maximizar ou eventualmente usar mesmo uma boa, velha e vetusta lupa, que não descortinaremos – naquele imenso espaço entre as respeitabilíssimas cabeças de Fareed Zakaria e Jon Stewart – qualquer vestígio do arquipélago.
Se me choca que a CNN pura e simplesmente ignore os nove torrões que, segundo a lenda, serão o que sobra da mítica Atlântida? Não. Aos 47 anos já não, e muito por força do hábito. Causava-me bem maior impressão, em miúdo, quando via cenários do género em programas informativos nacionais a padecer do mesmo mal ou que, quando aludiam ao arquipélago, dispunham quatro ou cinco caganitas de criptoméria pintada ou plástico com adesivo, uma ilha da Madeira desproporcionada, e o nosso primo Porto Santo quase sempre fantasma também.
Mas serve isto para o leitor, sobretudo aquele que ainda não compreende (ou aceita bem) o título provocatório deste espaço — Embaixada dos Açores —, calçar os sapatos de um açoriano e caminhar um bocadinho neles. Não demasiado, cautela, não vá afogar-se neste imenso oceano sem sentinelas.
Há, convenhamos, um aspeto doloroso em crescer num território feito de beleza e tradição, cultura e história, onde o sempiterno horizonte de mar nos lembra em toada constante dos conceitos de isolamento e distância, porém, sentir que estamos tão longe do mundo… que este pura e simplesmente nos ignora. Como se transmitisse a impiedosa mensagem de que teremos de batalhar dupla, ou triplamente, pela nossa identidade.
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