Na cidade
Era uma vez Lisboa: a história das festas de Santo António
Os miúdos pediam "cinco reizinhos" para o Santo António e as Marchas começaram pela mão de um cineasta.
Alfama costuma ser assim.
A 12 de Junho, 1932. O “Diário de Lisboa” revela em primeira página as surpresas da festa mais popular da capital. A novidade desse ano é “o espectáculo das Marchas Populares”, no Parque Mayer, com os “ranchos” do Bairro Alto, Campo de Ourique e Alto do Pina.
Já com o formato de competição mas em recinto fechado, o desfile será uma pequena amostra das enchentes na Avenida da Liberdade, onde as marchas confirmariam o estatuto de tradição, nos anos 80: “oferece-se o espectáculo das marchas populares, com as suas músicas, canções, centos de pares de namorados, bailes e descantes.”
A festa mexe com a cidade. Fervilha nos arraiais populares, em vários bairros lisboetas, e começa muito antes da noite do dia 12 de junho. Nesse ano, que inaugura o ritual em moldes próximos dos atuais, a chuva acabaria por condicionar “os folguedos ao ar livre” da ante-véspera. “Com isso lucraram os recintos cobertos”, escreve o matutino, que apresenta os números previstos a grande noite, no Parque Mayer, então uma sala carismática a precisar de ser revitalizada: “meio milhar de figuras, três grupos musicais e três marchas iluminadas, vestidas a capricho” são a grande atracção.
Embora sem essa designação, as marchas já antes haviam tido breves manifestações. Há registos de grupos que se deslocavam com archotes, cantando em competição — e que ficariam conhecidas como marchas ao filambó, numa adaptação das francesas “marches au flambeaux”.
Mas a tradição, como a conhecemos hoje, foi instituída graças ao cineasta, José Leitão de Barros, que nesse ano convidou várias colectividades a apresentarem os seus espetáculos e particularidades. Dois anos depois, o desfile foi finalmente para a rua: 300 mil pessoas viram passar 12 bairros e 800 marchantes, desde o Terreiro do Paço até ao Parque Eduardo VII.
Arraiais e sardinhadas.
A festa estava assim de volta à cidade, depois de muitos anos sem qualquer tipo de celebração. Não se realizava desde 1916, ano em que as portas do Mercado da Ribeira se fecharam aos lisboetas. Mas se 1932 deixa as janelas floridas e as pracetas iluminadas, os arraiais que se prolongam madrugada fora são uma tradição imemorial, anterior até à vida do padroeiro da cidade, que deu o nome às Festas de Lisboa. Santo António, para quem os miúdos pediam “cinco reizinhos”, terá nascido no princípio do século XII, perto da Sé, em Lisboa, como Fernando Bulhões.
Protetor da casa e da família, advogado das almas do purgatório, protetor dos namorados e casados, uma ajuda preciosa para encontrar objetos perdidos, foram muitos os atributos, sobretudo dedicados aos lisboetas, que ajudam a explicar a sua popularidade. Mas ao contrário das origens da festa — que tanto remetem para rituais religiosos como para pagãos relacionados com o solstício de verão — , os casamentos de Santo António só surgiram tarde, em 1950, promovidos pelo “Diário Popular” e financiados pela Câmara. Objetivo: possibilitar o casamento a casais lisboetas com dificuldades financeiras.
A morte de Fernando Bulhões, que após deixar Lisboa viveu em Pádua, a 13 de junho, instituiu a primeira data das festas. Mas houve um período em que as comemorações da capital se faziam em duas alturas distintas: a 13 de junho, data da morte de Santo António, e a 15 de fevereiro, dia em que foi trasladado para a catedral de Pádua. Às cerimónias religiosas, como missas, procissões, juntavam-se as promovidas pela Câmara, touradas e música no Terreiro do Paço e Rossio, e os rituais populares dos arraiais, sardinhadas, descantes e os tronos de Santo António, um dos elementos mais carismáticos das festas.
As crianças pediam “5 milreizinhos para a cera de Santo António”, que depois queimavam em fogo-de-artifício, e os tronos eram depois cuidadosamente avaliados pelo júri do concurso. E se as marchas se tornaram a maior manifestação etnográfica dos festejos de Santo António, a quadra é feita de vários símbolos como as cornetas, o púcaro de barro, o balão de cores, a bicha de rabiar, a alcachofra, os manjericos e as quadras. “Se houver tudo isto noutra quadra do ano, passa à categoria de inutilidades desgraçadinhas”, escrevia o” Diário de Lisboa”.
Este ano as festas já estão na rua. O tempo não tem ajudado mas o cheiro a sardinha, o vinho e a cerveja, faça chuva ou sol, nunca faltam. O carvão está preparado e há mais de 50 arraiais à espera de gente.