Na cidade

Numa cadeira de rodas, Marta mostra a beleza de Lisboa através da fotografia

Ficou paraplégica aos 15 anos, mas não deixou que o acidente a condicionasse. Agora com 49, adora fotografar a cidade onde nasceu.
Ficou paraplégica aos 15 anos.

Lisboa ainda tem um longo caminho a percorrer no que diz respeito aos acessos para pessoas com mobilidade reduzida, mas não há obstáculo que Marta Canário não consiga ultrapassar. Nem as pedras da calçada a impedem de fazer aquilo que mais gosta: passear pela cidade, de preferência com um telemóvel ou uma câmara na mão. Só precisa do aparelho e do seu meio de locomoção para um dia bem-passado.

A cadeira de rodas é sua companheira desde os 15 anos, quando ficou paraplégica devido a um acidente com monóxido de carbono que se libertou de um esquentador. “Preparava-me para a escola e fui tomar banho. Fiquei zonza e desmaiei em casa, no bairro de Alvalade. A minha irmã encontrou-me duas horas e meia depois”, recorda à NiT Marta Canário, de 49 anos.

Inanimada, foi levada para o Hospital de Santa Maria e ficou em coma durante cinco horas. Quando acordou, não sentia as pernas. “Disseram que podia ser uma reação normal e temporária, mas percebemos que de facto havia uma lesão na medula por inalação de monóxido de carbono”, recorda. 

Assim que descobriram que tinha ficado paraplégica, foi para o Centro de Medicina de Reabilitação de Alcoitão, em Alcochete, onde permaneceu durante cinco meses. “Na altura não sabia que não ia voltar a andar. Não havia nenhum caso no mundo de paralisia por intoxicação e isso deu-me esperança”, conta.

Os anos seguintes foram passados a fazer fisioterapia e em conversas com neurologistas, em Londres, que lhe disseram que o tratamento para este tipo de lesões estava em laboratório. Contudo, ninguém sabia quando ia surgir a cura. Entretanto, passaram-se 30 anos e Marta fez a única coisa que estava ao seu alcance: continua a fazer a vida normal.

Nunca deixou que o acidente determinasse a sua vida. Era miúda e só queria fazer tudo o que os adolescentes fazem: sair à noite com o grupo de amigos, ir à praia, namorar. Tinha o sonho de ser pivot do jornal da SIC e decidiu estudar jornalismo.

Tem 49 anos.

No terceiro ano de faculdade decidiu parar com os tratamentos. “Enquanto os meus colegas iam todos beber uma cerveja, eu tinha de ir para a fisioterapia. Aquilo começou a mexer um bocado comigo, senti que estava a perder os melhores dias da minha vida. Já não sentia grandes diferenças com os tratamentos e decidi parar”, conta Marta, que trabalha há 20 anos como assessora de imprensa da Novabase.

Apesar de tudo, teve tempo “para se habituar à situação” e percebeu que a vida não tinha parado. “Há coisas que deixei de poder fazer aos 15 anos, deixei de sentir a areia nos pés, mas isso não se reflete no meu dia a dia. Se não posso fazer uma maneira, faço de outra”, sublinha.

O interesse pela fotografia

Além da paixão pela comunicação, Marta sempre gostou muito de fotografia, mas nunca olhou para ela de forma séria. Pelo menos, até há cerca de quatro anos, quando começou a namorar com um fotógrafo e aprendeu mais sobre esta arte. 

“Entretanto a relação terminou e tive aquele período triste, em que me isolei um pouco. Foi uma altura complicada, mas sabia que não podia deixar-me levar pela tristeza”, recorda. Então, decidiu virar-se para a fotografia.

O primeiro passo foi comprar um telemóvel novo — o melhor do mercado na altura, um Samsung Galaxy S23Ultra — e começou a tirar fotografias. Nessa época, em 2022, criou também uma página no Instagram onde partilha os seus trabalhos desde então.

 
 
 
 
 
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“Sempre gostei de contar e escrever histórias. Quando pensava nesta arte na totalidade, gostei do conceito de fotografia de rua”, afirma. Assim, começou a captar tudo o que via e lhe chamava a atenção, desde uma pessoa a admirar o pôr do sol a um estendal cheio de roupas coloridas.

O objetivo principal, confessa, é “contar histórias com imagens”. Nunca pede para as pessoas posarem, até porque o que gosta mesmo é de as apanhar desprevenidas. Sejam turistas fascinados com Lisboa, ou lisboetas cheios de pressa que nem se dão conta da beleza da cidade.

Sempre que faz percursos mais longos leva uma espécie de dispositivo que, quando acoplado à cadeira de rodas, a torna elétrica. É uma “espécie de mota”, como lhe chama, e permite-lhe ultrapassar algumas barreiras que, de outra forma, seriam impossíveis sem ajuda. É o caso da calçada portuguesa, que não é nada simpática para pessoas com mobilidade reduzida.

A “mota” deu-lhe uma “autonomia brutal” e permitiu-lhe ir a locais onde não conseguia sozinha. Até aos 49 anos, por exemplo, tinha apanhado o barco de Cacilhas para o Terreiro do Paço. Hoje, é algo que faz com regularidade. Segue depois pelas ruas da Baixa, “à procura de tudo e de nada”.

“Passo o dia a andar de um lado para o outro. Fotografo pessoas sempre diferentes, encontro lugares que já tinha visto na televisão, mas nem sabia que eram ali”, diz. Por vezes, circula em passeios desnivelados, contorna sinais de trânsito e caixotes do lixo colocados no meio da via pública, mas a vontade de capturar o momento é maior do que tudo o resto. Mesmo nos sítios com pouca acessibilidade, consegue dar a volta a situação. “Costumo ir a sítios que estão preparados para mim, mas quando não estão, se sentir que consigo, vou na mesma”, reforça.

Marta costuma deambular por Lisboa cerca de uma vez por semana. Percorre sobretudo a zona do Cais do Sodré e do Terreiro do Paço, mas foge da caótica Rua Augusta. Prefere perder-se nas ruas do Martim Moniz, uma zona “culturalmente muito rica”.

Quando chega a casa, começa o processo de seleção e edição. Diariamente, partilha duas fotografias na página Marta Canário Photos: uma a cores; outra a preto e branco — todas com uma história por trás.

Há dias em que é a própria a ser fotografada, como aconteceu na marcha do 25 de Abril. Com um boné laranja e uma cadeira de rodas com apontamentos amarelo fluorescentes, chamou a atenção de fotógrafos, que registaram o momento.

“Independentemente da minha condição, posso aventurar-me pela nossa cidade para fazer aquilo que realmente gosto. Estou numa cadeira de rodas, mas, às vezes, é como se não estivesse”, diz. Afinal, é com ela que conhece uma cidade que a maioria dos lisboetas desconhece.

Carregue na galeria para ver algumas das imagens captadas por Marta Canário. 

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