Na cidade

“O único desejo egoísta que tenho para os meus filhos é que absorvam os Açores”

Na nova crónica da Embaixada dos Açores, o cineasta Luís Filipe Borges conta a sua experiência de uma semana "junto ao canal".
Uma semana nas margens do canal.

Se és açoriano e vives longe das ilhas, tens desde logo um peso interior, uma ambivalente mistura de saudade e sentimento de culpa. Se tens filhos nascidos fora do aconchego ilhéu, esse peso cresce de modo exponencial. O tal apego intrínseco, em partes iguais vulcânico e marítimo, faz-me tentar trinta por uma linha para que os meus miúdos absorvam Açores. É, aliás, o único desejo egoísta que tenho para eles, além da paixão pela leitura: que se sintam açorianos. De resto podem dizer-me o que quiserem nas suas diatribes adolescentes: 

“Pai, vou ser influencer!”
— Na boa. 

“Pai, nunca irei para a Universidade!”
— Fazes bem. 

“Pai, queremos deixar o futebol para nos dedicarmos à pelota basca!”
— Tranquilo, meus filhos. 

“Pai, não gastes mais dinheiro em viagens… os Açores são uma seca!”

— Arrumem as vossas coisinhas e ponham-se na rua, no Colégio Militar, na Casa Pia, não quero saber! Estão deserdados!

Não consigo deixar de sentir um orgulho tolo, ingénuo, pueril, na noção de que, embora em tão tenra idade ainda, o Tomé e o Fausto já possuem uma experiência açórica invejável. O mais velho, três anos e meio, conhece Flores, Terceira, São Miguel, Faial e Pico. Cinco ilhas. A primeira que o pai visitou, de barco a partir da Terceira e chegando de madrugada a São Miguel, foi quando já tinha 20 anos. Nada mau, portanto. “Haja saúde”, como se diz na minha terra. E parafraseando Jorge Palma, grande amante da ilha Terceira, em modo reloaded: “Enquanto houver mar para navegar, a gente vai continuar”.

Assim, chegámos recentemente de uma viagem de oito dias entre Pico e Faial, as ilhas separadas pelo braço de mar — sensivelmente entre seis a oito quilómetros — que um dos nossos grandes, Nemésio, imortalizou em “Mau Tempo no Canal”. Para o Fausto, 10 meses, a contagem vai em três ilhas; e do Tomé fica-nos a constante memória da última viagem a dois, quando a Sara estava grávida dele, e de — a meio canal e num dia de esplendor absoluto, o Faial recortado à nossa frente com brilho em todas as janelas da Horta e o Pico majestoso, saliente, sem um vestígio de nuvem, atrás de nós — ele ter dado os seus primeiros pontapés na barriga da mãe. E termos ficado ali em silêncio, de mãos postas no colo da mum-to-be. (Eu não estou a chorar, vocês é que estão a chorar.)

Na Ilha Montanha tivemos o privilégio de ser os primeiros hóspedes na segunda das PICO ISLAND VILLAS — uma vitória da arquitetura picoense típica, uma tradicional adega junta ao mar, recuperada com requinte e feita moradia de três assoalhadas, com sala majestosa, quintal amplo e a todo o redor da casa, painéis solares, vizinhos a centenas de metros, e dupla vista de estalo — ou para o Faial, a certas alturas do dia aparentemente à distância de um braço, ou para a montanha mais alta de Portugal. Nos últimos estertores da hora mágica foi sempre um dilema escolher entre o pátio frontal e o recorte mágico dos ilhéus Deitado e de Pé, ali à nossa direita; ou a seguir desde o quintal — sito junto à apetrechadíssima cozinha — as luzinhas tremeluzentes dos caminhantes, já acima da Casa da Montanha, esperando atingir o topo do mundo atlântico em poucas horas.

Quem tem crianças pequenas sabe bem que “férias” significa, basicamente, transportar as mesmas ansiedades, arrelias e stresses para um novo local, mas o cenário verdadeiramente cinematográfico em que nos encontrámos ajudou sobremaneira a relativizar birras, aproximações perigosas a tomadas elétricas ou fraldas capazes de entupir o Canal do Suez.

Nestes dias picarotos andámos descalços sobre a pedra quente da Ilha Maior, a mais recente das nove – uma adolescente geológica com 300 a 400 mil anos. O Tomé apreciou a chuva morna que caía aqui ali, como nos trópicos e, quando da magnífica janela da sala se desvendou fulgurante o Pico pela primeira vez, exclamou para a montanha: “Uau, olhó gigante, pai, ‘té toca o céu!”. Já o Fausto deu os seus primeiros passinhos sozinho, desde o móvel do LCD até uma mesa de apoio com produtos Vista Alegre. Mentira. Foi a segunda vez. Mas ficava mais bonito escrever que era a primeira. 

Nota: nenhum item Vista Alegre foi danificado durante a estadia nesta Pico Island Villa.

Custou-nos tanto deixar esta casa que, não me envergonho de o dizer, despedi-me dela com festinhas nas suas tradicionais portadas verdes (um contraste perfeito com a pedra negra, atestado da lava recente, símbolo do Pico e da capacidade que esta ilha de empreendedores tem de transformar as adversidades em criações novas e inesperadas — ver o caso sublime do vinho). Também funciona muito bem a madeira pintada de vermelho garrido, que vemos amiúde, em particular na zona do Lajido. Foi aí que, há coisa de uma dúzia de anos, andei tentado a adquirir uma casa destas então à venda por 50 mil biscas. Descobri há dois anos que voltara ao mercado por… 260 mil. Vou só fazer uma pequena pausa para mergulhar de cabeça num maroiço, com vossa licença. Já está.

Aqui, na zona costeira da Laja das Rosas, fizemos o trilho suave do Moinho da Criação Velha, até ao coração das vinhas Património Mundial, e fomos mergulhar no enclave balnear homónimo — servido por um bar humilde com uma vista de assombro e uma cozinha de estalo (Melhores. Lapas. De. Sempre.). 

Num dos nossos dias idílicos, aproveitando um momento, dir-se-ia, “Cometa Halley” — quando os dois miúdos adormeceram ao mesmo tempo, para uma épica sesta de três horas e meia — fui a pé até ao centro da Madalena (único município açoriano que, segundo os últimos Censos, aumentou a sua população), com dois intuitos:

— Abater uns gramas de barriga

— Beber um copo no muito recomendável Petiska, na companhia do meu amigo Terry Costa, o furacão cultural desta ilha e não só, homem do leme da MiratecArts, vir ao Pico e não experienciar um evento organizado por ele é como ir ao Rio e não mergulhar em Copacabana. 

Meus amigos, como se abandona o paraíso? Talvez brindando, já agora com um geladinho Terras de Lava Rosé, o enésimo triunfo da famigerada PicoWines.

Agora é hora de enfiar família e bagagens para dentro do carro, cortesia da sempre impecável Autatlantis Rent-a-Car; de nos despedirmos do magnífico Roberto Lino, proprietário das Villas e empresário de excelência, seguir de carrinho para dentro do ferry (coisa que fascinou os miúdos) e vemo-nos do outro lado do canal daqui a 15 dias. 

Calma. A viagem são 30 minutos. A segunda parte é que só chega daqui a duas semanas.

Incidente diplomático

Faial, Pico e a irmã São Jorge, quase sempre presente na sua beleza horizontal de dragão em descanso, são um terço do arquipélago, bem como a região popularmente designada como “Triângulo”. Com uma área total superior à da maior ilha, São Miguel, esta tríplice aliança merecia muito mais destaque nos média, atenção turística, carinho político em geral. Mas talvez uma das razões para o aparente esquecimento a que estas ilhas portentosas são votadas tenha a ver com inefáveis momentos como este:

Pois. Fofos. Só que não. Esta coisa da “Ilha dos Açores” nunca foi fixe, mas hoje, caraças, em pleno século XXI, aldeia global e sei lá quantos motores de busca literalmente à distância de um clique, não se admite mesmo. Podem ser burrinhos, acontece, ninguém leva a mal. Mas não sejam preguiçosos, sim? Prometo que não vão desenvolver nenhuma tendinite terminal nas falangetas se pesquisarem um pouquinho, ok? Vá. Então boa semana. Não se constipem. Pelo sim, pelo não, levem um casaquinho. Compram-se uns baris na Ilha do Agasalho.

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Tem dicas sobre spots açorianos que merecem atenção? Vistas deslumbrantes e menos conhecidas? Pessoas que vale a pena conhecer? Gostava de sugerir uma história à Embaixada dos Açores ou contar um episódio hilariante sobre malta de fora que tentou apanhar o metro, achou que tinha de nadar até à próxima caixa multibanco ou estava convencida de existir um rio em São Miguel? Envia um email para embaixadadosacores@nullnit.pt.

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