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Embaixada dos Açores: “Na Aldeia da Cuada, nos Açores, parece que o tempo parou”

Por ali são contadas histórias fascinantes e há ainda um alojamento com anfitriões que nos fazem sentir como família.
É um sucesso.

Teotónia e Carlos são os guardiões do templo, o casal de visionários que ressuscitou a Aldeia da Cuada do marasmo a que foi votada desde o abandono dos seus últimos habitantes, levados pela forte emigração dos anos 50 e 60 do século passado. Anfitriões de excelência, de carinho e serviço reconhecidos por mais de 60 nacionalidades, recuperaram literalmente da ruína um lugar de singularidades misteriosas — onde a água não corria, o acesso era delicado, e sito estranhamente perto de duas localidades que deveriam tê-la absorvido (tudo isto no ponto mais ocidental da Europa).

São pelo menos três séculos de história da encantadora Cuada. E décadas de labor, sonho e sacrifício de quem lhe devolveu vida — fazendo da aldeia um ex-libris florentino, maior empregador privado da ilha, destino internacional de alto quilate e puro orgulho do arquipélago.

Cruzeiro do Sul. A primeira vez que escutei a combinação destas três palavras foi numa canção de Rui Veloso, corria a adolescência tardia nas tardes húmidas do verão terceirense, e recordo-me dela agora sob o portentoso manto estrelado da Aldeia da Cuada. Ele (ou ela), essa estrela em particular, está destacada como se fosse conduzir Reis Magos – centenas de anos-luz sobre a Casa da Esméria, apontando-me o destino com o mesmo vigor duma mãe determinada.

Afasto-me agora talvez dez metros, sento-me no banco de madeira do jardim rústico deste lar imediato — as suas tábuas calejadas perfeitamente capazes de lançar sorrisos sarcásticos a sucessivos furacões e tempestades — e desvio por um só instante o olhar das constelações, nítidas como se estivessem à mão de semear, para observar a fachada da nossa casa dos próximos dias. Se acima de nós estão anos-luz, à minha frente há pelo menos três séculos de história.

A Esméria foi a última habitante desta casa — algures nos anos 60 do século passado — mas, desde o seu tempo até este que atravessamos, quantos milhares de passageiros não terão vivenciado a cápsula do tempo sita na costa mais ocidental do Velho Continente?

A aldeia — perfeito ex-libris florentino — representa uns Açores que (haja saúde!) desdenham do inexorável caminho para diante de todos os ponteiros de cada relógio. Orgulho das Flores, rebeldia suave contra os excessos da metrópole, símbolo de sustentabilidade.

A cantiga do Cruzeiro do Sul volta a fazer-se escutar, creio que talvez acompanhada dum coro de sereias atlantes hospedadas aqui um pouco mais abaixo deste promontório sagrado – nas ondas plácidas dos dias de inverno benfazejo, algures entre a Fajãzinha e a Fajã Grande.

Lugar da Cuada? Ou será da Coada? Ou antes, da Quada/Qoada? Há quem o tenha estudado previamente, como Pierluigi Bragaglia, e aquilo tudo que deu de si (feito em partes iguais de dedicação e amor) a este território situado já na placa tectónica americana.

São três a formar a raiz quadrada da Atlântida. Também Gabriela Silva, oficiosa e merecidamente nomeada Embaixatriz da Ilha, agente cultural e amiga de todas as horas, é uma ajuda inestimável. Há o mapa do decano Sr. Lima, desenhado pelo próprio à mão, com o nome tricentenário de todos os caminhos da aldeia antiga — ainda hoje as mesmas lajes que calcorreamos enquanto nos equilibramos nas pegadas de fantasmas idos, toneladas e toneladas graníticas de pedra – partidas em milhões de pedaços sabe-se lá com que inimaginável esforço — para formar ruelas, muros e habitações, pela perseverante gente que há tantas gerações escolheu este local para fazer a sua vida. Onde não havia água, note-se bem e com pasmo.

Porquê? Receio dos ataques dos piratas? Desavenças familiares que os levaram a apartar-se das estabelecidas comunidades da Fajã Grande e da Fajãzinha? Magnetismo telúrico, solo sagrado?
Há outras personagens ainda neste elenco da saga que une homem e natureza, passado e presente, sacrifício e amanhãs vindouros. A Dona Fátima do Moinho de Água, aqui a sensivelmente dois quilómetros, que se lembra bem da meninice na calçada irregular da aldeia, em que o calor vinha da lenha, a eletricidade era mito, e o chão das casas em terra. Há testemunhos arquitetónicos da antiga venda (como nas ilhas se chamava às mercearias), da pequena taberna, e até da primeira casa de meninas da ilha — cujo teto exclusivamente feito de telhas dava grandes oportunidades de deitar o olho aos mirones dos arredores, e de ocasião.

Há Carla Vieira, do museu de Santa Cruz, a sua generosidade e trabalho de pesquisa. Vasco Pernes e a prosa apaixonada das suas histórias da terra e da gente. E há, claro, o núcleo duro de protagonistas. Teotónia, Carlos, claro, mas também Sílvio e Carlota, o casal de genro e filha, atuais administradores.

Anteontem chegámos e o Sr. Carlos muniu-nos de pronto de documentação avulsa e carinhosamente guardada. Entre larguíssimas dezenas de notícias no arquivo de média, entre milhares verdadeiramente incontáveis de mensagens deixadas na compilação dos Livros de Honra, entre cartas batidas à máquina com pedidos clementes de respeito por este lugar e este projeto (o sonho do outrora “casal mais doido da ilha”), entre dossiers de reservas meticulosamente anotadas à mão, encontrava-se ainda um volume gigantesco — de seu nome “Atlas dos Açores” — trabalho científico da autoria de pelo menos duas dezenas de profissionais.

No índice onomástico de localidades açorianas, alfabeticamente organizado, e também ele na casa dos milhares, nem uma menção à Cuada, Coada ou Quada, aldeia ou lugar, sítio ou poiso, cápsula do tempo ou dimensão paralela. Nem o nosso vulto histórico ilhéu Gaspar Frutuoso dela obteve menção. Isto em pleno porta-aviões atlântico, como lhe chamou Vitorino Nemésio, ao longo dos 600 quilómetros que distam do ilhéu de Monchique à costa leste de Santa Maria — território onde amiúde surgem nomes místicos como Mistérios Negros, Criação Velha, Grota do Medo ou Terra do Pão.

Mas cá estamos, e se o algodão não engana, os testemunhos de pelo menos 60-sessenta-sim-60(!) nacionalidades diferentes, não nos deixam mentir. Um terço do planeta já foi atraído pelo magnetismo da Cuada, os seus representantes feitos orgulhosos embaixadores dos pontos de partida donde provêm.

E acredite o caro leitor, a palavra mais vezes repetida é “Paraíso”. Dos caracteres chineses à escrita árabe, do persa ao óbvio inglês, do magiar ao cirílico, do alemão ao grego, saímos instruídos sobre o tempo, o como, e o conceito abstrato de perfeição.

Aqui somos todos mortais feitos semideuses, é-nos oferecida a chance divina de tocar o fogo. Como Prometeu. Porque, antes de nós, alguém cumpriu. Nomes a repetir e fixar: Teotónia e Carlos.
Ela florentina, dizem que a mais bem vestida da ilha na sua juventude, mérito de um pai estilista nato; ele oriundo do Pico, fumador de dois charutos açorianos por dia, e colocado ao serviço das Finanças. Ambos preparados, assim o quisessem, para uma vida sem sobressaltos: a chefe de serviço da SATA e o homem das contas públicas teriam uma reforma tranquila mais do que assegurada na Região. Escolheram o risco, e ainda nem 40 anos de vida tinham cumprido.

Agora uma pausa súbita, imposta pelo caprichoso clima ilhéu. Acaba de cair uma bátega, e tenho o impulso de acender um cigarro enquanto absorvo o cheiro da terra molhada em mistura com o calor humano dos anfitriões — Teotónia e Carlos, Carlota e Sílvio — a empatia do staff, a resiliência florentina, o empreendedorismo a 1800 quilómetros da capital.

Tudo faz sentido neste breve intervalo ao caos do mundo. E sempre chegamos onde nos querem e esperam, como se costuma dizer. Encontrámos o Norte na aldeia — lugar, Paradiso, Paradies, Paradise, Paradis, Costa Oeste das Flores —, guiados em noites consecutivas pelo Cruzeiro do Sul que, tal como a bonança, sempre retorna. E o propósito é este, cristalino como as constelações desta noite nova. Honrar este lugar e aldeia o melhor que pudermos e soubermos. Assim o leitor o possa um dia fazer também.

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