O “jornalismo em momentos de crise”, apesar de desafiante e por vezes arriscado, sempre fascinou Beatriz Ferreira. A jovem de 26 anos sonhava tornar-se jornalista, mas o rumo profissional acabou por levá-la noutro caminho. “As coisas não se proporcionaram como esperava. Acabei por ficar pelo marketing, área onde trabalho há dois anos e meio. Mas aquele bichinho ficou cá sempre”, começa por contar à NiT.
O desejo de conhecer cenários difíceis com os próprios olhos para os mostrar aos outros manteve-se — e arranjou uma nova forma de o concretizar. A invasão da Rússia à Ucrânia, a 22 de fevereiro de 2022, provocou em Beatriz sentimentos contraditórios, de profundo lamento pelas vítimas da guerra, por um lado e por outro, uma profunda curiosidade sobre como se vivia no terreno.
O tempo foi passando, o conflito agravou-se e a lisboeta decidiu agir. “Pensei que havia outras formas de ajudar no terreno e decidi ir para lá como voluntária”, explica.
No final do verão rumou a Chernihiv para integrar a equipa da Repair Together, que descobriu no Telegram. A associação dedica-se “a promover o engajamento cívico e a mobilizar voluntários para lidar com as consequências da guerra, recorrendo a eventos culturais, como raves, shows de stand-up e concertos”, descreve o site “Volunteering Ukraine”.
Após o contacto inicial para se certificar se existiam vagas, teve de arranjar forma de lá chegar. “Basicamente dizem para apareceres, mas que és responsável pela viagem. Temos de ir sozinhos, não tratam de nada”, explica.
A jovem entrou na Ucrânia através da fronteira com a Polónia e rumou a Kiev, com destino a Chernihiv, a cerca de 150 quilómetros da capital. Era aqui que estava instalado o “acampamento internacional de voluntários” da Repair Together, que funciona sete dias por semana, “dedicado à construção de casas em comunidades afetadas pela guerra”.
A lisboeta dormia numa tenda e ajudava nas obras de construção das 10 casas que estavam em curso. O dia de trabalho começava às oito da manhã e “as tarefas dependiam sempre do que era necessário fazer naquele dia”. Duas pessoas do grupo — na altura, com 20, no total — “ficavam a cozinhar para todos, rodava diariamente”.
Escolheu esta associação em particular porque “tinha muitos estrangeiros e jovens”. “Isso passa alguma segurança. Assumi que poderiam ajudar-me com algum problema que tivesse, porque eram estrangeiros como eu.” Neste momento, o acampamento está encerrado porque é impossível dormir em tendas durante o rigoroso inverno ucraniano. “Fecharam a meio de novembro, mas vão reabrir perto da primavera”, explica.
A marketeer só esteve na Ucrânia cerca de 10 dias: a aventura começou a 29 de agosto e terminou a 11 de setembro (com dois dias na Polónia pelo meio), mas foram suficientes para perceber que “não é como ir fazer voluntariado para outros locais”. “Quando chegas é um choque, porque aparentemente está tudo normal. As pessoas têm uma rotina normal. No entanto, aos poucos, vamos detetando pequenas nuances, principalmente à noite”, recorda.
O que mais a surpreendeu foi precisamente “o sentido de normalidade das pessoas”, sublinha. “Quando vês coisas que deveriam ser chocantes e traumáticas, percebes que eles criaram anticorpos para lidarem com elas. Estive lá em setembro passado, e esse verão foi o que teve mais mortes de civis, por exemplo, mas para eles aquilo parecia normal.”
Normal, com muitas aspas, claro. Beatriz nunca tinha estado em Kiev e, portanto, não tinha termo de comparação. Os residentes, explica, tinham uma perceção completamente distinta da sua. “Perguntei diretamente a um rapaz o que tinha mudado com a guerra e a resposta dele foi ‘tudo, já nada era igual, nem as pessoas’”, recorda. “Achei os ucranianos super simpáticos e calorosos, mas já vivem assim [em guerra] há tanto tempo que aquilo já moldou as personalidades deles.”
Questionada sobre o sentimento de insegurança, não recorreu a eufemismos: “Sim, é inevitável”. Quando ouviu o primeiro ataque aéreo, “nem sabia como reagir”, mas é algo que nunca esquecerá. “Não dá para explicar a sensação porque nunca tinha estado num cenário daqueles. Depois comecei a relativizar”, reconhece. “Quando cheguei ao acampamento disseram-me que, nas tendas, ia conseguir ouvir os drones a voar por cima de nós, mas que eles já não se abrigavam. Eram tantos que passou a ser habitual para eles.”
Eventualmente, acabou por se tornar um ruído familiar também para a portuguesa. “Lembro-me de acordar com o tal barulho dos drones e nem associei, porque aquilo parecia uma nuvem de mosquitos. Só depois me lembrei do que me disseram.”
@beatrizabreuferreira A desejar com muita força que consigam os materiais necessários para terminar as casas 🤞🏻 #privilege #trendingtiktok #peace #k#kievu#ucraniak#kyivu#ukrainep#portuguesespelomundo #brasileirospelomundob#brasileirosporai #ucrania #guerraucrania #politicstiktok #politicaltiktok #politicabrasil ♬ original sound – Christmas Countdown🤶
Os ucranianos não normalizaram os bombardeamentos nem os ataques, mas já os integraram na rotina quotidiana. O governo desenvolveu uma aplicação — que todos os voluntários devem instalar — e que avisa a população do perigo iminente.
“Um dia, já estava quase a adormecer, por volta das 11 da noite, e, do nada, toca o alarme do telemóvel. Quase em simultâneo começa a ressoar uma sirene, muito alto mesmo. Fui logo para a receção do acampamento e, quando lá chego, vejo as pessoas tranquilamente a comer. Perguntei se era suposto ir para um abrigo, responderam que não, já estavam habituados. Seguem vários grupos no Telegram para saberem logo o motivo do alerta e para onde está a ser direcionado o ataque. Às tantas, acabamos por relativizar também.”
Quem não conseguiu encarar a decisão de Beatriz com leveza foi a família, que confessa, “não reagiu bem”, embora “já estivessem à espera que um dia fizesse algo do género” porque sempre disse que era esse o seu objetivo.
Contas feitas — como voluntária não pagou pela estadia no acampamento nem pelas refeições diárias, apenas pelas viagens até à Ucrânia e de regresso a Portugal —, voltaria a repetir a experiência. “Durante muito tempo não me pareceu que fosse possível, e, de repente, estar ali… foi incrível. Apesar de tudo, Kyiv é uma cidade linda e todo o cenário fez-me sentir agradecida.”
E o receio, não a impediria de voltar? “O medo é relativo. Deixou-me ansiosa, mas não ao ponto de ter vontade de não ir”, conclui.