Em cada esquina de Hay-on-Wye, uma livraria. Esta cidade galesa, autointitulada “a primeira cidade do livro do mundo”, é um verdadeiro paraíso para os leitores, embora a sua trajetória nem sempre tenha sido tão literária.
A história da localidade remonta à Idade Média, com destaque para o Castelo Hay, erguido pelos normandos. Segundo uma lenda, esta fortificação foi construída em apenas um dia e desempenhou um papel crucial como um importante ponto de controle e vigia entre a Inglaterra e o País de Gales.
Atualmente, a cidade, que alberga cerca de dois mil habitantes, é especialmente reconhecida pela sua vasta coleção de livros. No total, existem 26 livrarias, mas a The Old Fire Station foi a responsável por dar início à transformação da pacata localidade no Reino Unido, colocando-a no mapa turístico.
A mudança teve início em 1961, quando Richard Booth inaugurou a sua primeira livraria. O britânico, que morreu em 2019, aos 80 anos, desde cedo se dedicou ao negócio dos livros. O seu amor pela leitura foi cultivado pelo pai, um oficial do exército que frequentemente o levava a livrarias de segunda mão, como revela na sua autobiografia “My Kingdom of Books”, publicada em 1999.
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Compreendendo a oportunidade de transformar livros esquecidos num negócio próspero, Booth abriu a The Old Fire Station. Instalada num antigo quartel de bombeiros, foi apenas a primeira das suas várias lojas.
Em seguida, adquiriu o Castelo Hay, transformando-o numa livraria especializada em obras de fotografia e arte. Mais tarde, assumiu a gestão do salão agrícola da cidade, que se mantém aberto até hoje sob o nome Livraria de Richard Booth. Em 1978, foi reconhecida pelo Guinness World of Records como a maior livraria de segunda mão do mundo, com um acervo superior a um milhão de livros.
O reino de Hay
Seguindo essa onda de transformação, outros livreiros chegaram a Hay-on-Wye, que já era conhecida no início dos anos 70 como a “capital dos livros usados”. Contudo, Booth sentia que o apoio governamental à atividade editorial era insuficiente. Para protestar, no dia 1 de abril de 1977, saiu à rua com uma coroa artesanal e proclamou-se rei da cidade, junto aos portões do castelo. “Vou ser o monarca com mais páginas que já existiu”, declarou, na época.
Embora pudesse parecer uma mera brincadeira para chamar a atenção, a ação teve um forte impacto promocional. Com uma nova bandeira nas cores verde e branca a esvoaçar atrás de si, Booth argumentou que a independência do Reino Unido traria incentivos ao turismo e revitalizaria a economia local. Coroado como rei, emitiu passaportes, selos e moeda própria para o seu recém-criado reino. Nomeou ainda a sua égua, Goldie, como primeira-ministra — um episódio digno de um livro.
Booth manteve este título até à sua morte, em 2019. “Viu uma oportunidade para fazer publicidade. A declaração de independência foi parte do seu agudo sentido publicitário, da sua excentricidade e desejo de destaque”, explicou Mari Fforde, da Fundação do Castelo de Hay, à BBC. No fundo, Booth tinha como objetivo melhorar a economia da cidade através da promoção dos livros.
“Muitas cidades pequenas estavam em declínio naquela época. As pessoas das áreas rurais estudavam, mudavam-se e conseguiam empregos noutros lugares”, recorda Reg Clark, que foi nomeado Ministro da Tecnologia do reino.
A verdade é que, quer se considere loucura ou não, essa estratégia publicitária resultou, atraindo um fluxo constante de turistas e leitores ávidos. O mercado de livros de segunda mão prosperou ainda mais e hoje existem mais de 20 lojas do género.
As livrarias espalhadas pelas ruas pitorescas da cidade oferecem uma vasta gama de obras. Além disso, Hay-on-Wye conta com várias estantes públicas e até uma biblioteca ao ar livre, escondida nas muralhas do castelo.
A cidade começou a abrigar também o maior evento literário do Reino Unido: o Festival de Hay, cuja primeira edição aconteceu em 1988. Este não foi criado por Booth, até porque, inicialmente, o britânico estava contra a realização do mesmo. Afinal, destacava livros recém-publicados, e, portanto, contradizer a sua visão de valorização das obras de segunda mão.
Ainda assim, o evento idealizado por Norman, Rhoda e Peter Florence, tornou-se um sucesso. O ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, chegou a descrevê-lo como “Woodstock da mente”. Este festival literário realiza-se todos os anos durante dez dias, entre maio e junho, reunindo entusiastas de livros de todo o mundo.
Durante a época natalícia, há também um mini-festival, o Hay Festival Winter Weekend, que funciona como um verdadeiro mercado de Natal, mas focado exclusivamente em livros. A edição deste ano está agendada para decorrer de 28 de novembro a 1 de dezembro, contando com a presença de autores como Ali Smith, Paula Hawkins e Luke Evans. A entrada é gratuita, mas alguns eventos são pagos, com todas as informações disponibilizadas online.
Já no que diz respeito ao castelo, também teve um novo rumo. Cinco décadas depois da declaração de independência, em maio de 2022, a fortificação onde o rei morou e governou a cidade foi transformada num museu.
Como lá chegar
O aeroporto mais próximos da cidade é o de Cardiff, que fica a cerca de 50 quilómetros de distância. Se partir de Lisboa, encontra bilhetes de ida e volta desde 185€. Caso apanhe o avião no Porto ou em Faro, há voos desde 175€ e 238€, respetivamente.
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