Os espanhóis andam às voltas com os ponteiros do relógio e ninguém se entende sobre qual é, afinal, a hora certa. A discussão sobre o estilo de vida tardio dos espanhóis não é nova, mas atingiu patamares impensáveis após a ministra do Trabalho e Economia Social, Yolanda Díaz, ter sugerido alterações aos horários atualmente praticados na restauração.
“Nenhum país razoável mantém os restaurantes abertos à uma da manhã. É uma loucura continuar a fingir e a alargar os períodos de funcionamento até já não sabermos que horas são”, defendeu Díaz, que é também segunda vice-presidente do governo espanhol, numa reunião do grupo parlamentar do Sumar (partido que lidera) no início de março.
A ideia de “fechar os restaurantes espanhóis a partir da meia-noite ateou uma fogueira apagada com gasolina nas redes sociais”, descreveu o colunista Diego Medrano no diário digital “THE OBJECTIVE”. “Marcar o jantar de quem trabalha para as oito da tarde, incluindo o regresso a casa, é uma interferência intolerável na vida privada que nenhum Estado pode praticar sem consequências”, acrescentou.
As críticas choveram de todos os quadrantes, com os empresários da restauração à cabeça da turba de protestos. “A ministra pensa que mora na Suécia”, atirou Paula Ospina, do Les Filles Café, em Barcelona, em declarações ao “El País”.
Sugerir que os espanhóis devem ser “puritanos, materialistas, socialistas e sem alma” e ficar “entediados e em casa” — segundo a interpretação sarcástica da presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso —, em vez de saírem para jantar e tomar um copo com os amigos é considerado um ataque aos costumes tipicamente latinos. “Andou a passear pela Europa e agora pensa que temos de ser como os europeus que viu na Noruega e na Dinamarca”, escreveu José F. Peláez no “ABC”.
O país mais noctívago do Velho Continente é também o segundo mais visitado do mundo — precisamente por isso mesmo. “Reduzir o horário para nos adaptarmos à Europa? Os europeus são os primeiros a virem para cá aproveitar a nossa vida noturna”, sublinha o presidente da associação de hotelaria da província de Cádiz, Antonio de María.
Espanha recebe 72 milhões de turistas internacionais por ano, segundo os mais recentes dados divulgados pela Organização Mundial do Turismo e que contabilizam as visitas registadas até setembro de 2023. Os horários hoje defendidos como um pilar fundamental dos usos e costumes nos quais “o governo não se deve imiscuir e que não podem ser alterados por decreto” resultam de uma combinação de fatores. E nem todos remontam a tempos imemoriais — pelo menos um deles foi efetivamente adotado por decreto.
A famosa siesta, considerada exótica em muitas outras latitudes, era uma prática comum entre os espanhóis que se levantam ao raiar do sol para trabalhar nos campos. O período de maior calor, entre o meio-dia e as três da tarde, era sinónimo de pausa devido às temperaturas inclementes.
A sesta começou a ser adotada também nas cidades durante a ditadura franquista, já que permitia acumular dois empregos, uma necessidade para muitos espanhóis que viviam no limiar da pobreza. Atualmente, apenas 18 por cento da população admite dormir depois do almoço, segundo uma sondagem realizada em 2016 pela empresa de estudo de mercado Simple Lógica. Mais de metade dos inquiridos responderam que nunca faziam sestas, porém, muitos estabelecimentos comerciais continuam a encerrar entre as 13 e as 15 horas.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Franco determinou a mudança do fuso horário — e a combinação de ambos deu origem às longas jornadas que se tornaram uma espécie de imagem de marca do país. Os relógios espanhóis foram adiantados 60 minutos e ficaram certos com os da Alemanha, de quem Espanha era aliada, apesar do país estar geograficamente mais alinhado com o meridiano de Greenwich (que determina a hora em Portugal continental).
Em 2016, o então primeiro-ministro Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP) propôs o regresso ao nosso fuso horário, mas a ideia foi recusada sem ter chegado a ser verdadeiramente discutida.
A mais recente proposta da ministra do Trabalho, clarificou Díaz em entrevista à TVE, pretende reduzir as longas jornadas laborais dos espanhóis porque “os turnos noturnos, a partir das dez da noite, acarretam riscos de saúde mental e devem ser melhor remunerados”.
“Espanha tem a melhor vida noturna do mundo, com as ruas cheias de vida e liberdade. E isso também cria emprego”, ripostou a presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, do PP, na rede social X.
Es que somos diferentes.
España tiene la mejor vida nocturna del mundo, con las calles llenas de vida y libertad. Y eso también da empleo.
Nos quieren puritanos, materialistas, socialistas, sin alma, sin luz y sin restaurantes porque les da la gana.
Aburridos y en casa. https://t.co/z6jq0R9yRM
— Isabel Díaz Ayuso (@IdiazAyuso) March 4, 2024
O argumento de Ayuso não colhe simpatias junto do atual executivo liderado pelo primeiro-ministro Pedro Sánchez, do Partido Socialista, que defende “mais flexibilidade e jornadas laborais mais curtas”. O governo é a favor do lazer e das pessoas que querem aproveitar, sublinha a segunda vice-presidente Yolanda Díaz, mas com redução do horário de trabalho e melhoria da qualidade de vida.
“Bares, cafés, restaurantes e coisas como o futebol, a sesta ou os feriados são assuntos sérios que afetam os sensíveis pilares da cidadania espanhola e não devem ser discutidos pela rama, criando problemas aos hoteleiros nacionais”, alertou o jornalista Carlos Padilha no “THE OBJECTIVE”.
Se (quase) todos apreciam o modo de vida espanhol, também se estranha que os restaurantes estejam praticamente vazios às nove da noite e a rebentar pela costuras uma hora depois. E os portugueses, não são propriamente norte-europeus no que toca aos hábitos e costumes. Aliás, partilham uma característica com os vizinhos: demasiado tempo no trabalho. O chamado presentismo, condiciona significativamente os índices de produtividade nacionais e espanhóis.
E o impacto deste fenómeno no lado de lá da fronteira é ainda maior: os horários da restauração não são “a causa”, mas sim “a consequência” da longa jornada de trabalho, defendem os responsáveis do setor.
“Há pessoas que querem comer tarde. A questão não é os restaurantes estarem abertos até uma, é que os clientes podem ter chegado às onze”, explicou o presidente da associação de hotelaria da província de Cádiz, Antonio de María, ao jornal “Diario de Cadiz”.
Com a oferta a ajustar-se à procura e não o contrário, a proposta da ministra do Trabalho e Economia Social dificilmente passará de uma manifestação de boas intenções e arrisca ficar imortalizada apenas como “mais um dos memes” de Yolanda Díaz que circulam pela Internet. E podem mesmo bater a popularidade dos vídeos gravados durante a campanha eleitoral de 2023, onde a líder do Sumar professa a sua dedicação à tábua de engomar e revela que “adora passar roupa a ferro quando chega a casa após um dia de trabalho”.