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Pedro fez o Caminho de Santiago 18 vezes: “Qualquer um pode fazer coisas extraordinárias”

Agora, o gestor de 50 anos quer ajudar outros a percorrerem o "caminho deslumbrante", de forma completamente gratuita.
Tem 50 anos.

O que leva um ateu a percorrer o Caminho de Santiago? E, não contente, a repetir o feito por umas incríveis 18 ocasiões? Pedro Moreira encontra a resposta na famosa saga de J.R.R. Tolkien, “O Senhor dos Anéis”. Gestor de profissão, geek assumido, leu os livros com apenas 15 anos. O desenrolar da história acabaria por levá-lo, décadas mais tarde, ao destino que “continua a testá-lo mentalmente”. 

“Li ‘O Senhor dos Anéis’ com 15 anos, porque algures no tempo, os GNR fizeram uma canção [‘Sub-16’] que dizia ‘e com dezasseis, nunca se teve tempo de ler o Senhor dos Anéis, só de uma vez’. Fiquei curioso [risos]”, conta. A curiosidade não ficou saciada com os livros. Continuou a pesquisar sobre a história, e terá eventualmente descoberto as “bodegas” (adegas) subterrâneas de Morantinos ou em Moradillo de Roa, também descritas como “as casas dos Hobbit”, nos caminhos de Santiago. A partida não foi imediata. Ainda teria de ler sobre a cidade mais duas décadas e meia antes de “ter o clique”.

“Pensei ‘que se lixe’, e fui. Já tarde, muito tarde, com 40 anos. Entretanto, nos últimos dez já fiz 18 vezes o Caminho. Dos 15 aos 40 fui adiando, por uma razão ou por outra. Entretanto, comecei a fazer maratonas e ultra maratonas e foi ficando em stand-by”, justifica. 

Hoje, o desafio do Caminho já não é propriamente desafiante, mas a estreia, em junho de 2015, continua gravada na memória. “Ainda hoje tenho amigos de todo o mundo que fiz nesse primeiro Caminho, o Inglês [cerca de 120 quilómetros], um dos percursos que mais me diz. É absolutamente deslumbrante.”

Multifacetado, como se descreve, o gestor de 50 anos, tem uma vida “um bocadinho ocupada”. Joga padel, dá aulas da modalidade “a miúdos desfavorecidos numa escola complicada”; é ator amador e, pelo meio, é diretor de uma unidade de negócio numa empresa. “Não sei como consigo arranjar tempo para tudo”, admite.

Os desafios solidários

O horário carregado não o impede de planear desafios solidários e está a organizar dois para breve. Ambos envolvem caminhadas, claro. Quando percebeu que ia terminar 2024 com 14 dias de férias por gozar, Pedro Moreira começou a imaginar como poderia utilizá-los, fazendo uma “peregrinação” pelo meio. 

“Pensei ‘o Caminho de Santiago já me deu tanto, porque é que não retribuo?’”, explica. “Começou aí a história do ‘Caminho Geek’. Todos os anos levo amigos a Compostela, que, por alguma razão, têm receio ou não querem ir sozinhos. Trato da logística, de tudo. Este ano tomei a decisão de fazer o mesmo, mas vou levar malta que não conheço de lado nenhum.

É aqui que entra a vertente solidária do desafio: a viagem é totalmente gratuita. “Existem várias pessoas ou empresas que organizam idas ao Caminho, quem quer participar paga uma fee e está tudo incluído. Pois bem, vou fazer o mesmo, mas não vou cobrar nada.”

A ideia do gestor residente no Porto é “levar 10 pessoas na aventura da vida delas”, o que implica percorrer cerca de 120 quilómetros a caminhar. E para este percurso, decidiu começar “no quilómetro zero, neste caso, no Cabo Finisterra, passando depois em Muxía e daí acabar em Santiago de Compostela”.

O projeto já tem datas marcadas e as caminhadas vão ter lugar de 29 de abril a 4 de maio de 2025, “para apanhar feriados pelo meio e gastar o menos possível de úteis dias de férias”. O objetivo? “Mostrar que uma pessoa normal pode fazer coisas extraordinárias.”

“Vou lançar o apelo no grupo que criei no Facebook, o Caminho Geek. Os primeiros dez que se inscreverem são os que vão”, garante. E quem nunca correu um quilómetro sequer, também pode tentar a sua sorte. “Além de tratar da organização, também vou dar dicas de preparação física a quem nunca praticou desporto. Mas o percurso é pensado para pessoas que nunca fizeram nada, não quero matar ninguém [risos].”

O segundo desafio solidário é ainda mais abrangente e será Pedro a fazer o maior esforço: ir da Sé do Porto, onde reside, até Caminha, em menos de 24 horas. Quer percorrer os 120 quilómetros a pé e “pedir a toda a gente, conhecidos e não conhecidos, que comprem quilómetros, a um euro cada, por exemplo”. Atualmente está a decorrer uma discussão no tal grupo que criou, o Caminho Geek, para encontrar a associação que será apoiada. A que obtiver a maioria dos votos irá receber todo o dinheiro angariado.

A escolha do destino para este desafio tem outro motivo, a Caminho Talk. “Eu e o Rui Aquino (proprietário do albergue de Caminha), que entre os dois temos 40 caminhos feitos, vamos conversar numa live com pessoas que conhecemos ao longo dos anos nos percursos”, justifica. E quem quiser assistir ao vivo, pode encontrar-se com Pedro Moreira em Viana do Castelo para fazer a pé a última etapa, de 26 quilómetros, até ao albergue de Caminha. É também uma forma de proporcionar uma experiência inicial a quem pensa fazer o percurso maior.

Afinal, que caminhos são estes?

Os Caminhos de Santiago são uma rede de rotas de peregrinação até Santiago de Compostela, na Galiza, em Espanha, onde se acredita que estão as relíquias do apóstolo Santiago. Entre os diversos percursos possíveis, sete destacam-se pela sua popularidade e importância histórica.

O Caminho Francês, o mais famoso e tradicional, com início em Saint-Jean-Pied-de-Port, tem aproximadamente 770 quilómetros divididos por 33 etapas. O Primitivo, com início em Oviedo, é considerado o original e apresenta um percurso mais montanhoso e menos movimentado. 

O Caminho do Norte segue pela costa norte da Espanha, ao longo do mar Cantábrico e passa por cidades como San Sebastián e Gijón. O Inglês começa em Ferrol (ou A Coruña), o Vía de la Plata, desde Sevilha até Compostela, e o Caminho de Inverno, é uma alternativa para evitar as montanhas com neve nos meses mais frios do ano. Finalmente, o Caminho Português, que pode ser iniciado em Lisboa ou no Porto e tem conquistado popularidade nos últimos anos. 

Pedro Moreira Caminho Santiago
Já está a organizar mais um caminho.

Geografias à parte, todos partilham uma característica comum: a espiritualidade que permeia a tradição da peregrinação a Santiago de Compostela. Apesar da sua forte conotação religiosa, muitos decidem percorrer um deles com o intuito de superarem os seus limites físicos e mentais, como Pedro Moreira.

“Sou ateu, mas sou de uma família eminentemente católica e fiz todo um percurso católico: batizado, primeira comunhão, profissão de fé, só não fiz o crisma. Apesar de respeitar imenso a fé de cada um, não faço o Caminho por algum tipo de fé, mas porque é uma descoberta”, descreve.  

No fundo, é uma espécie de viagem dupla, real e interior. “Andamos 10 ou 12 dias, se fizer sol, se chover, com dores, sem dores. Acontecem mil e uma coisas que nos põem à prova. Fisicamente acho que nunca fui testado, mas mentalmente já fui”, reconhece. Para quem está habituado a correr longas distâncias, caminhar centenas de quilómetros parece ser — à partida — bastante mais fácil. Pedro, porém, hesita em concordar e opta por uma comparação. 

“Quem corre costuma dizer: se queremos conversar connosco, fazemos uma corridinha de 10 quilómetros, se for devagar temos tempo para isso. Se queremos conversar com Deus, seja ele qual for, devemos fazer uma maratona para conversar com esse ser superior. Diria que o Caminho de Santiago é um conjunto de maratonas.”

Embora tenha dificuldade em descrever o que sentiu nas 18 vezes que já rumou a pé a Santiago de Compostela, “metade sozinho e outras nove acompanhado”, aventura-se a resumir a experiência numa palavra. “É partilhar. As etapas, as conversas, a alegria, a dor, o silêncio, a introspeção…, é partilhar um conjunto enorme de coisas”, reflete. “Há uma energia no Caminho que é difícil transmitir e quem vive aquilo, fala disso com paixão. É uma experiência única, é quase impossível descrevê-la só com palavras.”

Questionado sobre o motivo que o leva a continuar a pegar na mochila e partir, a resposta do gestor é imediata e assertiva: “Conseguir emergir uma versão melhor de mim próprio, é o que espero sempre. Não precisa ser um salto quântico, basta ser um por cento melhor do que era. Cada vez que vou, venho de lá uma pessoa melhor. Isto é clarinho”, conclui. 

Carregue na galeria para ver algumas fotografias dos caminhos que Pedro Moreira já fez ao longo dos anos.

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