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João passou uma semana com os Tana Toraja — o povo que trata os mortos como vivos

Naquela região da Indonésia, o funeral é o evento mais importante. Por vezes, demoram 10 anos a ser realizados.

João Amorim, conhecido como Followthesuntravel nas redes sociais, está decidido a conhecer aquele que é considerado o maior arquipélago do mundo, a Indonésia. O viajante português de 32 anos começou a explorar o mundo após vencer o concurso da Gap Year Portugal em 2015. Além de ter viajado pela América Latina, também trabalhou como guia de viagens na Landescape. Em 2022, passou quatro dias com uma tribo indígena nas ilhas Mentawai — uma das primeiras experiências marcantes no país do Sudeste Asiático que continua a explorar.

Volvidos dois anos, regressou à Indonésia para conhecer Sulawesi, a 11.ª maior ilha do mundo e um tesouro de cultura e tradições antigas onde, em certas zonas, a vida e a morte coexistem de uma forma muito particular.

“É como se fossem vários países num só”, começa por contar à NiT o jovem natural de São João da Madeira. O explorador confessa que parece “uma realidade paralela”, tanto culturalmente como visualmente, — devido à arquitetura das casas tradicionais, chamadas tongkonan, e aos terraços de arroz em socalcos, que são considerados Património Mundial da UNESCO; diferentes de qualquer outro lugar que tenha visitado (e já foram muitos).

Um dos destinos mais peculiares da ilha é Tana Toraja, uma região localizada na província de Sulawesi do Sul, conhecida pela sua cultura única e tradições relacionadas à morte e aos rituais funerários. A região é famosa pelos seus elaborados enterros, onde os mortos são mantidos em casa por longos períodos (por vezes, anos) antes de serem finalmente enterrados em túmulos escavados nas rochas.

João Amorim passou lá uma semana, no início do junho. “Já há muito tempo que via vídeos deste lugar, sabia que era na Indonésia, mas não prestava muita atenção. Há cerca de um ano, comecei a pesquisar mais sobre Sulawesi e comecei a ficar ainda mais curioso”, recorda. 

Apesar de ter passado dois meses na Indonésia, admite não ter visitado nem metade do arquipélago — mas não podia partir sem conhecer Tana Toraja, onde a maioria da população é cristã. “Embora tenham costumes semelhantes aos da Igreja Católica, como os caixões de madeira para os funerais, têm uma série de rituais relacionados com a morte que, para nós, não são habituais”, explica.

Antes de viajar para lá e compreender todo o contexto, admitiu que certas tradições lhe pareciam “completamente surreais”, como as famílias manterem os corpos dos falecidos durante vários anos. “Tudo naquela região está ligado à morte. As pessoas poupam ao longo da vida para terem um funeral decente, que acaba por variar consoante a aldeia”, partilhou o turista, que teve a oportunidade de assistir a aproximadamente quatro funerais enquanto esteve no local, acompanhado pelo guia.

Em alguns casos, o enterro só acontece anos após a morte. “Fui à casa de uma família em que o senhor faleceu há dois anos, mas a cerimónia fúnebre só irá ocorrer em julho. Vai ser uma ocasião grandiosa, pois tratava-se de um homem proeminente, ligado ao governo e de posses”, relata.

As filhas, orgulhosas, disseram-lhe que já tinham comprado 90 búfalos para serem sacrificados no funeral. Em Tana Toraja, acredita-se que estes animais são os guias espirituais que irão acompanhar a alma até ao paraíso. Antigamente existia um limite para o número de sacrifícios (aproximadamente 30), mas atualmente isso já não acontece.

 
 
 
 
 
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Após o sacrifício dos animais, a carne irá alimentar as pessoas que vão estar presentes no funeral, que posteriormente, podem levar para casa o que sobrar. É um dos raros momentos em que comem carne de bovino. No caso do homem cujo corpo João teve oportunidade de ver ao vivo, o funeral terá cerca de três mil convidados,, “uma coisa absurda”.

Outra curiosidade é que, logo após a morte, o cadáver esteve exposto sentado numa cadeira durante três dias, com os trajes típicos, para que as pessoas o fossem visitar. Só depois disso é que o colocaram numa urna.

Os Toraja acreditam que os mortos, até serem enterrados, são apenas doentes, e por isso são tratados como tal: dão-lhes de comer, de beber, dão-lhes cigarros e vivem com a família no mesmo quarto. Quando o viajante partilhou esta história em específico nas redes sociais, muitos seguidores perguntaram como era o cheiro, mas, por incrível que pareça, não há nenhum. 

Os corpos são tratados com formaldeído, um produto químico que permite manter o estado de preservação. O guia que acompanhou João, contudo, tinha outra teoria. “Acreditava muito nas forças do além, espíritos e magia negra. Disse-nos que aquele corpo tinha sido alvo de magia negra por um feiticeiro e por isso é que não cheirava mal, porque fazia com o que cheiro saísse do corpo e ficasse na floresta”, recorda.

Os funerais são eventos-chave nesta cultura e podem demorar até 10 anos a acontecer. Quanto mais rica a família, mais tempo demora a ser organizado. Como é o momento mais importante, querem garantir que todos os familiares e amigos estejam presentes. 

Ainda assim, todos eles têm dimensões diferentes e até os próprios rituais diversificam de aldeia para aldeias. Há, contudo, algumas tradições obrigatórias em quase todos, como João teve a oportunidade de presenciar. Por norma, duram entre três ou quatro dias, sendo que no primeiro dia são sacrificados porcos e, às vezes, búfalos. 

É um dos momentos em que mais gente está presente, algo que já não acontece no segundo dia, quando trazem as prendas para a família, que podem variar desde dinheiro ou animais. O viajante português, como não tinha nem porcos, nem búfalos para oferecer, deu-lhes 5€ (em moeda local).

João assistiu a tudo, incluindo o sacrifício dos porcos, que foi “agressivo” e “duro de se ver”. “Estão presos, amarrados em paus ou em sacos. Dão-lhes um golpe na garganta para morrerem rápido, mas às vezes demora uns minutos. Ouvem-se os gritos dos porcos, vê-se todo aquele sangue”, descreve. 

Os animais são sacrificados para facilitar a chegada da alma ao paraíso. No final come-se a carne, não fica a apodrecer. Nos eventos maiores, costumam existir também homens a cantar uma espécie de mantra, cânticos espirituais.

 
 
 
 
 
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Além destes momentos, o jovem assistiu a outra situação bastante dura: uma luta de búfalos, que fazia parte de um funeral tão grande que durava meses. Todos os dias havia eventos diferentes, incluindo a tal luta, que acontecia numa arena temporária. “Passado cinco minutos fui-me embora, percebi que era muito agressivo. Estavam três mil pessoas ali à pinha, tudo a vibrar e a gritar, não havia espaço para entrar mais ninguém. Sei que há casos em que os búfalos fogem e muita gente morre”, conta.

Outro dos rituais dos Tara Toraja é o Ma’nene, onde desenterram os mortos a cada dois ou três anos, entre agosto e setembro. “Tiram os caixões para fora, trocam as roupas e os acessórios e pincelam o exterior com verniz. Fazem isto com regularidade para que se preserve o máximo de tempo possível”, refere.

A verdade é que, após ter passado uma semana com os Tana Toranja, percebeu que não é assim tão surreal como pensava. “Veem a morte de uma forma diferente, fazem o luto deles, à sua maneira. O funeral é uma espécie de celebração, onde tiram fotografias com os mortos, porque para eles é um momento importante”, conclui. 

Carregue na galeria para ver algumas imagens que João Amorim tirou em Tana Toraja. 

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