Viagens

Loucura ou coragem? Manel foi do Canadá ao Alasca à boleia de desconhecidos

A viagem de quase 5.000 quilómetros durou 56 dias. Disseram-lhe que era “maluco da cabeça”.
Tem 26 anos.

Manel Paiva Brandão perdeu a conta a quantas pessoas o chamaram louco durante a sua viagem de mochila às costas entre Vancouver, no Canadá, e o Alasca, nos EUA, onde fez uma grande parte do percurso à boleia. Até hoje, o jovem de 26 anos não tem certeza se essa experiência foi um ato de loucura ou bravura — talvez ambas —, mas desde pequeno sonhava em explorar aquele canto do mundo “onde a natureza prevalece sobre o ser humano”.

Recorda-se claramente de como ficava fascinado a ver documentários do Discovery Channel focados na vida selvagem. Tinha por volta de 10 anos, mas já nessa idade desejava ansiosamente o momento em que pudesse embarcar numa aventura como as que vivia Bear Grylls, famoso por ser um especialista em sobrevivência em condições extremas.

O Alasca é aquele sítio do mundo onde os animais ainda vivem como se não existissem seres humanos. Sou completamente apaixonado pelo destino, sabia que eventualmente ia lá parar, só não sabia quando nem em que moldes”, começa por contar à NiT o consultor de Lisboa.

Aventureiro nato e apaixonando pelo mundo outdoor, desde cedo que Manuel, começou a acampar com amigos. E chegou a fazer viagens de mochila às costas pela Europa, movido pela curiosidade pelo desconhecido e pelo contacto com a natureza. Esse desejo levou-o a explorar a escalada, um desporto que praticou durante três anos.

Atualmente, dedica-se sobretudo às corridas , uma paixão que surgiu de forma inesperada durante a pandemia. Já completou três IRONMAN e quatro maratonas. Apesar de os treinos intensivos semanais terem colocado a sua “vida de aventura” em segundo plano, o desejo de visitar o Alasca sempre permaneceu latente.

Há aproximadamente um ano, decidiu que era o momento de concretizar essa aspiração e começou a preparar “a aventura de uma vida”.“Senti que era o momento certo, preparei-me a vida toda para esta viagem. Decidi fazer uma pausa de três meses e pedi uma licença sem vencimento”, revela.

Ao planear o percurso entre o Canadá e o Alasca, Manel viu-se numa situação complexa, que descreve como “intimidante”. Inicialmente, pensou em realizar a viagem de carro, mas rapidamente percebeu, após uma pesquisa online, que o aluguer de automóveis entre a British Columbia e o Alasca era praticamente inexistente. Em seguida, investigou opções de autocarro, mas as escassas ligações apenas faziam o trajeto entre as grandes cidades — e não era bem isso que Manel procurava.

“Não havia solução absolutamente nenhuma. É um sítio com poucas estradas e muito pouca gente e estava completamente condicionado do ponto de vista de mobilidade. Foi o meu primeiro choque de realidade”, confessa. Sem grandes alternativas, considerou desistir da ideia “por ser impossível ir de um sítio para o outro”,  até que teve a súbita ideia de tentar apanhar boleia.

“Procurei na Internet e não havia absolutamente nada sobre uma pessoa que tenha feito esta viagem à boleia. Cheguei a ler um comentário no Reddit a dizer que quem se atrevesse a fazer isso, ia morrer”, recorda.

Diante de outros comentários semelhantes, decidiu fechar o computador. A decisão estava tomada: não precisava de mais opiniões. Nunca tinha viajado sozinho, e menos ainda enfrentado uma experiência de tal magnitude. No dia 3 de julho, embarcou num avião para Vancouver, onde começou a jornada mais incrível que alguma vez fez.

O início da aventura

 Antes de iniciar as boleias, Manel enfrentou um trilho de 400 quilómetros nas Montanhas Rochosas do Canadá, com a mochila às costas — uma experiência que considerou “a mais exigente” da sua vida. Ao chegar à vila de Jasper, consultou guardas florestais sobre as condições dos rios que teria de atravessar. A resposta era sempre a mesma: “Ninguém vai para essa zona da montanha, não há relatos sobre os níveis de água ou as condições do trilho, aconselhamos-te a não ir, estes lugares são verdadeiramente remotos e sem rede de telemóvel”.

Apesar dos alertas, Manel optou por arriscar. Atravessou um rio glaciar com água a cinco graus, lutou contra mosquitos persistentes e escapou de ursos. Numa das noites, viveu um dos momentos mais aterradores da expedição.

Dentro da tenda, acordou com o som de ramos a quebrarem-se, indicando a aproximação de um grande animal. Tremeu de medo e, na aflição, pegou no comunicador por satélite — a única forma de enviar mensagens à família — e mexeu na tenda. “De repente, o animal começou a fugir pela montanha. Até hoje não sei se era um urso ou um alce, mas foi uma experiência assustadora”, relata.

 
 
 
 
 
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Passou dez dias completamente só, onde a “solidão era, por vezes, ensurdecedora”. “Chorei várias vezes, às vezes de alegria, outras de tristeza e algumas de pânico por não saber que decisão tomar”, confessou nas suas redes sociais. Este trilho foi apenas um dos capítulos significativos de uma jornada que ainda estava longe de terminar. Após esses dias intensos, começou oficialmente “a vida de boleias”.

De carro em carro até ao Alasca

“O primeiro objetivo era ir de British Columbia para White Horse, capital de Yukon, mas ainda não sabia bem como ia fazer. Fui a um café onde contei os meus planos a duas pessoas que me disseram que era maluco, que eram 1.200 quilómetros com ursos em todo o lado, onde não há aldeias ou cidades. Novamente, fui extremamente desaconselhado”, recorda. 

Apesar dos avisos, especialmente após a dura experiência nas Montanhas Rochosas, Manel estava determinado a alcançar o Alasca. Com a mochila às costas, o polegar em riste e um cartaz na mão, procurou a sorte nas boleias. Inicialmente, escreveu de um lado “on an adventure to Alaska” (“numa aventura para o Alasca”), mas os motoristas não paravam, achando-o louco. Depois, decidiu escrever no outro lado do cartaz o nome da aldeia mais próxima, porque cada quilómetro contava.

Após muita espera, conseguiu a primeira de muitas boleias, que o levou à segunda aldeia mais próxima numa viagem de uma hora. A partir daí, restavam 1.000 quilómetros de estrada, sem aldeias pelo caminho. “Tive sorte. Assim que escrevi o nome, uma van parou e disse que me tinha visto na última localidade. Ofereceu-se para me levar a uma estação de gasolina a mais de 300 quilómetros”, relata.

O que Manel não esperava era construir ligações tão especiais com as pessoas que o transportavam. Passava horas a contar e ouvir histórias de vida, e os momentos de silêncio eram raros. Com um casal que o recebeu na sua autocaravana, desenvolveu tanta empatia que decidiram prolongar a boleia. Quando se deu conta, estava com eles há três dias e havia finalmente alcançado o seu destino: White Horse.

“Também iam para o Alasca, mas eu optei por não continuar com eles. A despedida foi difícil e voltar a estar sozinho também, mas esse era o objetivo da minha viagem”, explica. Viu-os partir para a sua jornada e regressou ao centro da cidade preparado para passar a noite na tenda, mas a sorte bateu-lhe à porta novamente.  “Sem eu pedir, um rapaz da minha idade veio falar comigo e perguntou-me o que estava ali a fazer. Conte-lhe a minha história e ele, achando-me um pouco louco, convidou-me para um copo e ofereceu-me dormir na sua casa.”

 
 
 
 
 
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No dia seguinte, voltou à estrada e apanhou boleias que, por vezes, nem demoravam 10 minutos. Contudo, admite que, na situação em que se encontrava, “cada quilómetro era uma vitória”. Durante o trajeto, travou amizade com mais uma pessoa que o convidou para ficar na sua casa durante uma semana. “A hospitalidade que encontrei nestes lugares era algo que nunca tinha experienciado na vida”, afirma.

O mais desafiador — e emocionante — era desconhecer onde passaria a noite a cada dia. Cortar os laços com as pessoas que conhecia não era fácil, mas Manel sabia que tinha de prosseguir viagem.

O sonho tornado real

Um mês após a sua chegada a Vancouver e depois de várias boleias em estradas não pavimentadas, alcançou finalmente o Alasca. A última boleia deixou-o à entrada da fronteira, que atravessou a pé. 

“Assim que atravessei, um polícia olhou-me nos olhos e perguntou-me o que estava ali a fazer a pé, onde estava o meu carro. Respondi que tinha apanhado boleia e ele, meio irritado, disse que me achava maluco e que era a primeira vez que via alguém a fazer isso naquela zona, onde não costumam passar muitos carros”, relembra Manel.

Aquele dia foi um dos mais difíceis da viagem, levando mais de quatro horas até que alguém lhe oferecesse abrigo. “Foi frustrante e desmotivante. As pessoas nem me olhavam nos olhos”, confessa. 

Em vez de ficar parado, decidiu continuar a andar, sabendo que, a alguns quilómetros, havia uma pequena mercearia. “Vi um sinal a indicar gelados e achei que era ali. Arrisquei numa estrada de terra batida no meio do nada, quando surgiu um jipe com dois mineiros a bordo, que me olharam como se tivessem avistado um urso”, conta. Acabaram por lhe oferecer a sua primeira boleia no Alasca.

Após vários dias a explorar o Alasca, Manel apanhou um voo para o Gates of the Arctic, o parque nacional menos visitado da América, tão remoto que só é acessível de avião. Nos dias seguintes, Manel visitou comunidades esquimós, e conheceu locais que o convidavam para jantar e até para dormir.

A hospitalidade que encontrou continuou a surpreendê-lo, mas o verdadeiro choque surgiu na reta final da viagem. “Na última semana, uma rapariga que trabalhava como pescadora viu-me a tremer de frio às nove da noite, tentando conseguir boleia. Tornámo-nos grandes amigos. Disse-me que, no dia seguinte, partiria durante três semanas para ir pescar, oferecendo-me o seu carro, se quisesse”.

Completamente atordoado com tal oferta, algo impensável em qualquer país europeu, a sua primeira reação foi recusar. No entanto, após insistência, acabou por aceitar ficar com um carro só para ele durante uma semana, até o seu voo de regresso a casa, a 27 de agosto.

No total, viveu 56 dias de aventura, percorreu aproximadamente 4.800 quilómetros à boleia, caminhou longas distâncias, dormiu em tendas e gastou cerca de 6.000€. 

 A viagem pelo Ártico foi como “abrir uma caixa de Pandora” que agora é difícil de fechar. Embora não saiba quando voltará a viajar, a única certeza de Manel é a de que um dia regressará ao lugar onde encontrou a felicidade: o Ártico.

Carregue na galeria para ver algumas fotografias da viagem.

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