Quando João Amorim decidiu ir até à ilha de Socotra, no Iémen, não estava à espera de encontrar uma região que parecia saída de um filme de ficção. O criador de conteúdos já passou por quase todos os continentes, mas foi aí que encontrou cenários que nunca imaginou que pudessem existir.
“Parece que saímos deste planeta e aterrámos num completamente inventado”, confessa à NiT o português de 33 anos, natural de São João da Madeira. “Quando jogamos um jogo, por exemplo, percebemos que aquilo é uma cópia recriada da realidade em que vivemos. E Socotra é examente assim. Tem árvores como qualquer outro sítio, só que são tão diferentes do normal que parecem inventadas. Também tem dunas como uma praia em Portugal, mas são enormes e o mar é um azul perfeito.”
Antes de viajar até à ilha esquecida por causa dos confrontos no país, João viu vários vídeos nas redes sociais. A primeira vez que decidiu aventurar-se até à região foi no início de 2024. Na altura, a única forma de lá chegar era através de um voo humanitário saído dos Emirados Árabes Unidos, com bens para ajudar as regiões afetadas pelos constantes bombardeamentos.
“Era um voo supostamente humanitário e que continua a existir, semanalmente. Hoje já existem outras formas de lá chegar, mas naquela altura era o único que existia”, recorda.
Entre os vários vídeos que consultou na preparação da viagem, deparou-se com diversos viajantes e turistas a contarem a história de Abdullah “Abdul” Al-Salim Ellai, mais conhecido como “homem das cavernas”, por ter crescido numa gruta. Hoje, com 62 anos, até já ganhou fama internacional.
O português tinha a certeza de que o queria conhecer, mas tinha um único receio: que a experiência não fosse tão autêntica. “Muitas vezes quando viajamos para estes sítios mais inóspitos, o que acaba por acontecer é que as pessoas vão muito aos mesmos lugares e conhecem as mesmas pessoas”, explica. “Portanto, tiram sempre as mesmas fotografias. Isso, às vezes, faz com que as experiências pareçam um bocado falsas porque é como se fosse um ritual.”
João dá o exemplo das viagens à Papua-Nova Guiné, onde as tribos locais tendem a recriar os mesmos rituais como forma de entreter os visitantes, apesar de não serem propriamente a realidade vivida. “É uma representação que os turistas querem ver e depois acaba por ser uma desilusão, porque se percebe que é um teatro”, diz, acrescentando que tinha medo que o mesmo acontecesse com Abdul.
No entanto, bastou conhecê-lo para perceber que estava completamente enganado. “Sim, era um senhor que realmente falava inglês, mas porque é estupidamente inteligente. Portanto, era realmente autêntico e aprende rapidamente a fazer e a dizer coisas, e a perceber o que é que as pessoas acham piada ou não”.
Abdul nasceu e cresceu numa gruta na lagoa de Detwah, onde a mãe já vivia. Ali, aprendeu tudo o que sabe hoje sobre a sobrevivência. “Ele conta sempre uma história de quando era criança e a mãe foi ao mar apanhar peixe. No meio, trazia o filho, o irmão dele, e ele ficou confuso sem saber se era um peixe também. Só depois é que percebeu que era o irmão.”

João aprendeu a paralisar um peixe com a boca e a cozinhar raia
Das duas vezes que esteve com Abdul — no início de 2024 e, mais recentemente, em março deste ano — o criador de conteúdos passou um dia inteiro a acompanhar o “homem das cavernas” de perto.
“Houve um momento em que ele estava a falar connosco e, de repente, viu um cardume na lagoa”, recorda à NiT. “Foi buscar uma rede e fomos a correr atrás dele. Ele depois trincou-os com a boca, supostamente para matá-los, mas já ouvi dizer que aquilo só os paralisa”
A pesca continua a ser a principal forma de alimentar a família. Abdul chegou a ter 16 filhos, segundo nos conta João, mas apenas seis estão vivos. Atualmente, todos vivem numa pequena casa na aldeia mais próxima, a de Qalansiyah. No entanto, o homem das cavernas continua a ir quase todos os dias até à lagoa.
Um dos truques mais impressionantes que o criador de conteúdos aprendeu foi o de pescar e cozinhar raias a utilizar apenas o animal e a água do mar. “Ele consegue vê-las na areia à noite com uma lanterna. Com um anzol, consegue pescá-las e cortar o espinho para que não o piquem, porque são venenosas. É muito doloroso.”
Depois da pesca, o homem esteve a cozinhar para João e para outros convidados. “Basicamente, a única coisa que precisa é a própria raia e água quente do mar”, explica. “Ele corta, tira o fígado da raia e mete-o numa frigideira para fazer óleo. Depois, frita tudo ali.”
Naquela noite, João e Abdul juntaram-se a vários residentes locais, que disseram ao português que a raia é afrodisíaca e funciona quase como um viagra natural. “Eu não senti esses efeitos, ainda bem”.
@followthesuntravel
A primeira vez em que esteve com Abdul, o criador da página “Follow The Sun” tirou-lhe uma fotografia e prometeu que se algum dia voltasse, iria imprimi-la para oferecer ao novo amigo. Quando regressou à Socotra, em março, foi precisamente isso que aconteceu.
“Fiz com ele o que faço muitas vezes, que é tirar uma fotografia com uma câmara instantânea. Adoro fazer isso, principalmente em sítios mais remotos porque muitas vezes as pessoas nunca tiveram uma fotografia delas ou mesmo que tenham, é sempre uma forma de desbloquear tensões, aumentar a curiosidade e muitas vezes até de as humanizar”, afirma.
O viajante partilha que Abdul sempre posou para inúmeras fotografias de turistas e até de grandes órgãos, como a estação britânica BBC e a revista “National Geographic”. Mas até à data, nunca tinha recebido uma destas imagens impressas. “É muito vaidoso e sabe que tem uma presença diferente e jovial”, frisa. “As pessoas ficam sempre admiradas por ele ter 62 anos porque tem muitos músculos, é forte e adora usar colares.”
Quando ofereceu a fotografia, Abdul sorriu de orelha a orelha. “Ele ficou mesmo feliz”, afirma, acrescentando que também lhe ofereceu novos anzóis, a pedido do próprio homem das cavernas.
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