“Mamã, quero ir para ali.” Foi o que João Amorim disse, na altura com apenas dois anos, quando viu pela primeira vez o filme “O Livro da Selva”. Pouco ou nada ligava à televisão ou aos filmes da Disney, mas a história de Mogli, um rapaz indiano criado por lobos, deixou-o completamente colado ao ecrã. Mal sabia ele que, 28 anos depois, o desejo se tornaria real.
João Amorim tem 30 anos, nasceu em São João da Madeira e, como acontece a muitos jovens portugueses, sentiu-se perdido quando terminou o mestrado em Bioquímica. Era bom aluno e tirava boas notas, mas não era este o futuro que lhe estava destinado.
“Tinha acabado o mestrado e estava super infeliz e desnorteado com a escolha que tinha tomado. Senti que estava no sítio errado e isso foi difícil de aceitar”, começa por contar à NiT o jovem. E quando estamos perdidos e sem rumo, qual é a melhor decisão que podemos tomar? A resposta é fácil: fazer um gap year.
Por coincidência, foi precisamente em 2015 que a Gap Year Portugal lançou pela primeira vez o concurso que oferece 6.500 euros de bolsa para quem quiser fazer uma pausa durante um ano e passar esse tempo a conhecer o mundo. João Amorim e a namorada tiveram a sorte de vencer o primeiro concurso e aquele cliché de que um ano sabático pode mudar o rumo de uma vida tornou-se mesmo real.
“Viajar foi o escape que precisava para parar, sair da rotina, conseguir encontrar-me e fazer aquilo que gostava”, recorda. Fizeram as malas, prepararam o roteiro e partiram juntos em direção à América Latina, onde andaram a seguir o sol durante oito meses.
Foi dessa experiência que surgiu o “followthesun”, nome no Instagram de João Amorim, que conta com mais de 100 mil seguidores e onde partilha todas as aventuras desde então. Mais do que paisagens bonitas, o intuito do viajante é partilhar a interação com a cultura e as pessoas. É mostrar o lado bom e o mau, com foco na experiência social e cultural.
O casal visitou países como Colômbia, Peru, Costa Rica, Nicarágua e Guatemala. Foi por este último país da América Latina que acabou por se apaixonar. Assim que regressou a Portugal, decidiu organizar uma viagem à Guatemala e enviou o plano para algumas agências.
Quando se tornou guia de viagens da agência Landescape, conhecer o mundo deixou de ser um hobby e passou a ser um trabalho que lhe proporcionou oportunidades que jamais tinha sonhado. Uma delas foi passar quatro dias com uma tribo indígena nas ilhas Mentawai, na Indonésia, no mês de maio.
Os quatro dias com uma tribo
A proposta surgiu da Bluebanana, uma marca espanhola de roupa que convidou João Amorim para participar de um documentário relacionado com a sustentabilidade.
“Tivemos a ideia de ir até Sumatra, uma ilha na Indonésia que, nos últimos anos, ficou com 80 por cento da selva totalmente destruída devido à plantação de óleo de palma. Um cultivo que tem consequências em muitos lugares no mundo, mas principalmente na Indonésia. É uma consequência super visual e intensa, andas horas de avião e só vês óleo de palma”, conta.
Situadas mesmo à frente de Sumatra, nas ilhas Mentawai a realidade é oposta à da principal ilha da Indonésia. “A ligação das pessoas com a natureza é incrível. O que nos interessou foi esta conexão e nós queríamos explorar um bocado estes dois mundos. Filmar a destruição provocada pelo consumismo, pelo exagero e pelos nossos hábitos e, mesmo ali ao lado, uma cultura completamente conectada com a natureza”, explica o viajante.
Com um guia que falava inglês e mentawai, um fotógrafo e um videógrafo, partiram de Sumatra em direção às ilhas Mentawai, onde ficaram durante quatro dias. Não foi, no entanto, a primeira vez que João Amorim conviveu com uma tribo indígena, por isso, já imaginava o que o esperava. “São culturas diferentes, mas com princípios fundamentais iguais, que é a conexão com a natureza, esta simplicidade que é incrível”.
Após duas horas de barco e uma hora e meia a caminhar pelo meio de selva, o grupo encontrou-se finalmente com Toikot, um dos Sikereis, ou seja, o homem com a posição e status mais alto da sua tribo. “A função dele é cuidar da selva e dos animais. Passava praticamente o dia todo a tratar dos porcos e galinhas e a ir buscar plantas para os alimentar”, recorda.
Outras das funções do Sikerei são conhecer a fauna e flora e ser curandeiro. “Tem de conhecer todas as plantas da selva e saber o que cada uma faz. Andámos com ele de um lado para o outro, a fazer as tarefas diárias e mostrou-nos como se faz o veneno que usam para caçar.” É uma mistura de quatro plantas inofensivas que, combinadas, podem até matar um humano, e é colocada nas flechas quando vão caçar.
Conhecidos no Ocidente como The Flower People, as flores e as tatuagens que usam no corpo são as proteções que os Sikereis usam para afastar os maus espíritos e conseguirem realizar as suas funções.
Como estava a “invadir” a terra dos Mentawai, não podia ir de mãos a abanar. Levou dois volumes de tabaco para oferecer à tribo porque tinha ouvido dizer que fumavam muito. Uma afirmação que se veio a comprovar depois de terem fumado os dois volumes num dia e meio. Ali, o tabaco era natural e enrolado em folha de bananeira. “Como é enrolado em folha de bananeira, aquilo não queima até ao fim e apagava-se logo. Na selva, levava sempre uma espécie de pau, um incenso que utilizava para ir acendendo o cigarro enquanto estava a caminhar”, explica.
Praticamente todo o ecossistema da ilha gira à volta das árvores Sagu. Não são mágicas, mas não estão muito longe disso. O interior dos ramos e troncos é comestível e serve de alimento para os porcos, galinhas e até mesmo humanos. “Fazem uma espécie de pão. Provei e não gostei, porque tinha um sabor muito ácido, mas aquela árvore alimenta todos os animais da selva”. Quando deixam de servir para os animais, são cortadas para conseguirem chegar ao topo, onde encontram minhocas, um dos alimentos da tribo. Além disso, a casca da árvore Sagu é usada para fazer a roupa que utilizam no dia a dia.
João dormiu na casa do Seikerei durante os quatro dias, mas existem outras comunidades indígenas que estão entre quatro horas e quatro dias de caminhads. Naquela região vivem praticamente sozinhos, afastados uns dos outros. Desta forma todas as pessoas da aldeia têm um terreno com as tais árvores Sagu, portanto todos têm alimento e espaço para plantar. No entanto, nem a distância impediu outros membros da tribo a irem até à casa do Seikerei para darem as boas vindas ao grupo.
A comunicação com a tribo foi relativamente fácil, até porque estavam sempre acompanhados pelo guia que conseguia comunicar com eles. A expressão facial e corporal também ajudava bastante. “Notava-se que estava bem e feliz. Era muito expressivo e carinhoso, tocava-nos, perguntava se estávamos bem”.
Toikot deitava-se tarde e acordava ainda antes do sol nascer. A rotina era praticamente sempre a mesma: acordava, fumava o primeiro cigarro do dia e começava a chamar os porcos para os alimentar. De seguida, ia para a selva caçar e mostrou ao grupo o seu ritual e como preparava o veneno. No final do dia regressavam à cabana, onde voltavam a chamar os animais. Os pintainhos, como eram muito pequenos, eram guardados num cesto para não correrem o risco de serem comidos pelas cobras. “Era assim a vida, dedicada às galinhas, aos porcos e à selva.”
Ali não existiam horas definidas para as refeições. Comem quando surge a oportunidade, desde camarões que apanharam no rio ou a larvas que encontram nas árvores. “Só provei as larvas e não gostei. Para nós faziam comida diferente, traziam bolachas da aldeia. Numa das noites, ele tinha um pássaro e colocou-o literalmente na fogueira e comeu-o. Parecia carvão, uma coisa muito estranha. Dentro de uma panela também tinha um morcego, mas não me atrevi a comer. Sou curioso mas é mais fácil fazer essas loucuras na cidade”, diz.
Um dos momentos mais marcantes destes quatro dias aconteceu quando João perguntou a Toikot quantos anos tinha. A resposta do Sikerei da tribo deixou-o sem palavras.
“Disse que não sabia que idade tinha nem lhe interessava. O que lhe interessava era o dia de hoje e o de amanhã, interessavam-lhe os porcos e as galinhas, e simplesmente ser Sikerei. Era na selva que vivia e cuidar dela era o seu único objetivo”, lembra.
“É de uma sabedoria impressionante e deixou-me com muita vontade de lá voltar. Notava-se que era uma pessoa especial, sempre muito paciente e carinhoso. No final, fez-me prometer que ia voltar”. Enquanto espera pelo regresso do viajante às ilhas Mentawai, aproveite para carregar na galeria e ver algumas das fotografias tiradas nos quatro dias que passou com uma tribo indígena.