Viagens

Raquel tem 94% de incapacidade física. Foi abandonada pela TAP num aeroporto

Um problema burocrático da transportadora portuguesa lançou a passageira num verdadeiro pesadelo em Amesterdão, a temer pela vida.

O que podia ser o início de umas férias tranquilas em Amesterdão, revelou-se um verdadeiro inferno para Raquel Banha, de 26 anos. Natural de Lisboa e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência, a autora do blogue “Chairleader” nasceu com uma doença neuromuscular rara: tem 94 por cento de incapacidade física, deslocando-se numa cadeira de rodas elétrica de 196 quilos, e está dependente de um ventilador, com bateria finita, para respirar. Ainda assim, foi completamente deixada “ao abandono” nos voos de ida e volta da companhia aérea portuguesa TAP. 

O primeiro constrangimento aconteceu no dia da viagem de Lisboa para Amesterdão, a 19 de abril. Depois de várias chamadas telefónicas e desentendimentos, por pouco não conseguiu embarcar neste primeiro voo — mesmo tendo informado a companhia, com 34 horas de antecedência, sobre o material que iria levar no avião: a tal cadeira de rodas elétricas de 196 quilos a transportar no porão e os dois ventiladores BiPAP que teria de levar na cabine, um deles a funcionar e o outro de reserva.

Acabou por correr tudo bem e não houve qualquer constrangimento na viagem de ida, mas o pior foi o regresso. No dia 24 de abril, quando tinha voo marcado para Lisboa, o avião partiu sem ela. O embarque foi negado pela TAP, por “não terem informações sobre a cadeira” e Raquel e a sua assistente pessoal ficaram completamente sozinhas num aeroporto desconhecido, sem qualquer apoio, assistência e alternativa.

Quanto ao acompanhamento durante a noite, “foi completamente nulo” e não teve direito a hotel, comida nem assistência. Com 94 por cento de incapacidade física, dependente de um ventilador e medicação importante que já não tinha, Raquel e a assistente foram abandonadas no aeroporto, onde passaram a noite, mas não conseguiram dormir. Viveram numa aflição para conseguirem encontrar tomadas elétricas para carregar o ventilador e ninguém foi capaz de perguntar se precisavam de alguma coisa.

A NiT falou conversa com Raquel Banha, membro da direção da Associação CVI ‒ Centro de Vida Independente, para perceber o que aconteceu nestes últimos dias.

O primeiro constrangimento aconteceu na viagem de ida. O que aconteceu?
Após a compra dos bilhetes, quem precisa de apoio, deve fazer um pedido de assistência especial até 48 horas antes da viagem, uma regra que está prevista nos Direitos dos passageiros com deficiência ou mobilidade reduzida da União Europeia. No entanto, a UE é bastante explícita quando diz que “não lhe pode ser recusado o embarque devido à sua deficiência ou mobilidade reduzida, a menos que a aeronave seja fisicamente demasiado pequena ou que haja motivos ou regras de segurança que impeçam a companhia aérea de o transportar”. Até à data da viagem, marcada para dia 19 de abril, às 9h05, infelizmente estive doente e de baixa com uma infeção respiratória. Estive até à última sem ter a certeza se podia viajar, ou não. Assim que senti que a minha saúde me permitia embarcar, preenchi o formulário o mais depressa possível, cerca de 34 horas antes da viagem. Sabia que era arriscado, mas também sabia que a viagem não me podia ser recusada sem uma justificação legítima.

O que colocou no formulário?
Adicionei toda a informação necessária sobre o material específico a transportar no avião de um passageiro de mobilidade reduzida. O principal a mencionar era a cadeira de rodas elétrica, de 196 quilos, a transportar no porão, e os dois ventiladores BiPAP que teria de levar comigo na cabine, um deles a funcionar e o outro de reserva. Paralelamente, na secção de Necessidades Especiais, a TAP tem uma página dedicada a problemas de saúde, onde esclarece que em caso de doença respiratória crónica e necessidade de oxigénio extra ou outro equipamento médico a bordo, é preciso solicitar uma autorização médica para embarque. Esta autorização — MEDIF —, deve ser preenchida por um médico do passageiro e posteriormente enviado para o departamento de Medical Cases da TAP. Uma vez que tenho insuficiência respiratória grave e utilizo permanentemente um ventilador para respirar (teoricamente, enquadrar-se-ia no ponto “outro equipamento médico a bordo”), já tinha o MEDIF preenchido, mas recebo uma resposta, às 8h28, do dia 18, a dizer que o formulário estava incompleto, sendo que, duas das informações em “falta” não tinham sequer campo apropriado no formulário onde as pudesse colocar. Depois, às 9h33, do mesmo dia, o departamento de Medical Cases responde-me a dizer que como não enviei o ficheiro com 48 horas de antecedência, teria de alterar a reserva para outro dia. Ou seja, muito levianamente, foi-me pedido que eu cancelasse o meu voo, o qual levei cerca de 2 meses a planear, e marcasse outro para daquela altura a 48 horas, para que o processo pudesse ser iniciado.

Como resolveu a situação?
Indignada, submeti novo formulário, com a maioria da informação já enviada. A TAP para voltar a fazer as mesmas perguntas, às quais já tinha respondido três vezes. Soube-se nesse contacto que estava haver problemas na autorização, por parte da TAP, do transporte da cadeira de rodas elétrica no porão, bem como do ventilador de que necessito de utilizar permanentemente para respirar. O motivo apresentado foi que, dado que se tratava de um passageiro Medical Case, não estava assegurado a assistência médica para a viagem, mas eu não precisava de assistência médica a bordo, pois sou autónoma com os aparelhos que utilizo. Mais tarde, disseram-nos que não havia autorização, dos serviços competentes, para o transporte e uso na cabine do aparelho de ventilação, durante a viagem, nem do transporte no porão da cadeira de rodas elétrica. A solução apresentada, foi a mesma que o departamento de Medical Cases deu: alterar a reserva para outro dia, para daquela altura a 48 horas. Ficámos incrédulos.

Não lhe apresentaram nenhuma justificação?
Foi-me recusada uma explicação legítima e clara do porquê da não autorização, sem ser a frase-robot “tem de pedir assistência com 48 horas de antecedência”, e quando foi pedido para falar com o superior da agente do apoio ao cliente, a mesma voltou a negar, deixando-nos completamente sem alternativas. Por mais que explicássemos que o caso não se tratava de um Medical Case, a operadora foi sempre peremptória e nem tão pouco se dignou a tentar perceber e resolver a situação. Já em desespero, voltámos a ligar para a linha de apoio uma segunda vez (terceira chamada telefónica). Só neste último telefonema é que se recebeu todas as devidas autorizações. A viagem para Amesterdão correu como deveria correr, bem. No entanto, no check-in, tive de repetir novamente todas as informações da cadeira, como se eu nunca tivesse preenchido nenhum formulário… No fim, correu tudo bem e não houve qualquer constrangimento na viagem de ida.

No regresso, a situação foi ainda pior.
A viagem de regresso a Lisboa estava agendada para dia 24 de abril, às 19h30. Chegámos ao aeroporto com mais de duas horas de antecedência, dirigimo-nos de imediato ao local do check-in prioritário e fomos logo atendidas. Pediram novamente todas as informações sobre a cadeira de rodas elétrica e o ventilador, e ficaram estupefactos com o peso da cadeira. Ao fim de vários telefonemas, a operadora do check-in, informou que o local de embarque não era acessível à cadeira de rodas e que estava a tentar resolver a situação. Por esse motivo demorou cerca de 50 min a fazer o check-in. Depois disso, encaminharam-nos para o balcão de assistência a pessoas de mobilidade reduzida e, após uma eternidade de conversas entre os funcionários, numa língua que nós não entendíamos, cerca de 40 minutos antes do embarque, foi-nos dito que não tinham qualquer informação que, para esse voo, havia uma passageira em cadeira de rodas elétrica. Já era demasiado em cima da hora para garantir o meu embarque, até porque o elevador para levar a cadeira de rodas até ao avião (Ambulift) não estava disponível.

O avião partiu sem a Raquel?
Frisaram que não havia solução de momento, apesar de toda a informação associada à reserva de ida e volta na TAP, de uma pessoa em cadeira de rodas, a assistência e logística não estava acionada junto dos serviços do aeroporto de Schiphol em Amesterdão. O embarque foi novamente negado pela TAP, justificando que eu era um Medical Case e como não tinham informação sobre a minha cadeira, mesmo com a alternativa apresentada, não podia viajar.

A TAP apresentou alguma solução?
Mais uma vez, foi nos dito que a única hipótese era falar diretamente com a linha de apoio ao cliente TAP e ir à bilheteira do aeroporto comprar um novo voo. A partir daqui ficámos completamente sozinhas, sem qualquer apoio, assistência e alternativa. O que é certo é que o avião TP671 das 19h30 partiu sem nós. Ficamos em terra, desamparadas e desesperadas.  Aos meus pais, que se encontravam em Lisboa e reportaram toda a situação, foi-lhes dito que nestes casos de necessidades especiais, o passageiro tem de estar no aeroporto três horas antes do voo, dado que nunca me foi transmitido. Incrédula com esta informação, fui pesquisar no site da TAP e a informação passada não foi a correta. Três horas correspondem a voos intercontinentais e, ainda assim, é apenas a hora aconselhada. Portanto, a hora aconselhada para voos dentro da Europa são duas horas antes da partida, tempo mais do que respeitado por mim e pela minha assistente. 

Portanto, foram obrigadas a comprar um novo voo?
A alternativa foi ir a uma bilheteira e encontrar um voo o mais cedo possível para regressar a Lisboa. O único voo disponível era da KLM às 08h55. Demorou bastante tempo, cerca de duas horas até ter a certeza que não haveria constrangimentos com a cadeira e ventilador. Tive de desembolsar 2.250€ nos dois bilhetes.

Ficou toda a noite no aeroporto. Não lhe ofereceram nenhum hotel onde pudesse passar a noite em condições?
Relativamente ao acompanhamento da TAP durante a noite, este foi completamente nulo. Fomos completamente abandonadas. Eu, doente neuromuscular, com 94% de incapacidade física, dependente de um ventilador para respirar (com bateria finita), medicação importante que já não tinha comigo, fui totalmente abandonada sozinha, com a minha AP, num aeroporto gigante de um país estrangeiro, sem ninguém para nos ajudar. “Dormimos” no aeroporto, numa aflição para encontrar tomadas elétricas para carregar o meu ventilador e os nossos telemóveis. Não houve hotel, comida, assistência, nada. A Swissport e a TAP desresponsabilizaram-se por completo. Ninguém foi ter connosco ou perguntou por nós.

Na hora do check-in do novo voo, voltou a ter problemas com o embarque?
Já com medo que nos culpassem por não estarmos três horas antes do voo (8h55) no check-in, com base na informação anteriormente recebida (mesmo sendo incorreta), por volta das 5h30 começamos a preparar-nos para nos dirigimos ao check-in. Ao chegar ao balcão, é nos dito que há uma anomalia com a nossa reserva e a operadora aconselhou-nos a ir novamente à bilheteira ver o que se passava, mas perdemos 1h30 em burocracias. Pedimos à hospedeira de terra da KLM que fizesse o favor de avançar já com o pedido de assistência, para que tudo corresse bem. 

E, desta vez, conseguiu embarcar?
Chegada a assistência do aeroporto, um supervisor da KLM vem ter connosco exatamente com a mesma história que a Swissport nos disse. Não tinham informação sobre a minha cadeira, já era demasiado em cima do voo e o Ambulift não estava disponível, pelo que nos devíamos mentalizar que não iríamos conseguir apanhar aquele voo e que seria necessário trocar os bilhetes. Nisto, a minha assistente começa a chorar de desespero e o supervisor mostra-se muito pouco colaborante. Acaba por se ausentar e as quatro pessoas que estavam connosco mostraram-se deveras incomodadas com toda a atitude. Uma colega hospedeira, que estava a assistir à conversa, pegou no telemóvel, fez uma chamada e em cerca de 10 minutos conseguiu desbloquear a situação, na condição de eu transferir logo para uma cadeira de rodas manual do aeroporto e a minha cadeira elétrica ir diretamente para o porão. Assim foi. A 20 minutos do encerramento do embarque, troquei imediatamente de cadeira e fomos a correr pelo aeroporto para chegarmos a tempo à cabine. Conseguimos entrar no avião a tempo e sentarmo-nos com calma. Tudo parecia estar a correr bem, até que nos dizem que estão a ter problemas ao colocar a minha cadeira de rodas elétrica no porão, pois era demasiado alta para a pequena porta da bagagem. Ou se arranjava forma de diminuir a altura, ou a cadeira não podia embarcar e nós teríamos de sair do avião. Lembrei-me de que é possível inclinar a cadeira, de modo a que ela vá deitada e assim fique com menos altura. Nisto, somos informadas que a cadeira já foi levada da zona do porão e que não será mesmo possível transportá-la. Restava decidir se partíamos sem a cadeira, ou se saíamos do avião para apanhar outro voo. 

E o que decidiram?
Por sorte, uma das pessoas que ouviram a conversa era o co-piloto que, de repente, veste um colete amarelo e sai porta fora para chamar de novo a equipa da carga, para que trouxessem de novo a cadeira. Enquanto o co-piloto está no terreno, estão ambos a falar por chamada, onde a minha assistente o vai orientando sobre como reclinar a cadeira. No final, conseguem guardar a cadeira no porão, tudo graças ao co-piloto que decidiu tomar as rédeas da situação. Aqui foi apenas o fator humano, da boa vontade e disponibilidade que fez a diferença. E só assim a cadeira entrou no avião. Apesar de quase uma hora de atraso, os passageiros que estiveram assistir a tudo isto, bem como a tripulação, bateram palmas pelo final feliz.

A TAP vai responsabilizar-se pelo que aconteceu?
Ainda não sei. Estou neste momento a elaborar uma reclamação junto das várias entidades, nomeadamente da TAP, para reportar todo este acontecimento e pedir o reembolso do terceiro voo adquirido, bem como uma indemnização pelos danos causados.

Já tinha viajado com a companhia aérea portuguesa?
Já tinha viajado várias vezes com a TAP, sendo que a última, em setembro de 2022, foi com um grupo de pessoas com deficiência, a maioria com mobilidade reduzida. Houve diversos constrangimentos, nomeadamente falha na comunicação das informações sobre os nossos produtos de apoio previamente fornecidos, uma cadeira de rodas danificada, voos atrasados dada a incompetência do staff e cerca de três horas de espera pela assistência da MyWay, no voo de regresso a Lisboa.

Como tem sido a sua experiência a voar com outras companhias?
Infelizmente, devido à complicação e insegurança que é viajar de avião, não costumo viajar, tal como acontece com grande parte das pessoas com deficiência, especialmente se tiverem mobilidade condicionada. Até ao momento, só viajei com a TAP, a SATA e agora recentemente com a KLM. A TAP está no fim da lista. 

O que deve ser mudado para evitar estas situações?
É preciso garantir que a informação interna é passada a todos os departamentos e entidades, tornar a comunicação disponível nas plataformas digitais mais clara e percetível, formar constantemente as equipas e ouvir as pessoas com deficiência. Na compra de bilhetes, deveria ser possível comprar bilhete de mobilidade reduzida e idealmente as informações relevantes deveriam ser possíveis de adicionar à conta de cliente. Acima de tudo, é preciso agir em concordância com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O aviso de 48h trata-se de uma discriminação, constituindo-se numa violação da convenção, uma vez que obriga as pessoas com deficiência a ter um tratamento diferente dos restantes clientes. A CP — Comboios de Portugal, já teve esta obrigatoriedade das 48 horas, entretanto passou para 12 horas e atualmente exige 6 horas de aviso, sendo que já se sabe que vai voltar a reduzir. Eles são o exemplo real de que é possível reduzir e esse é o caminho correto.