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Matias Damásio: “Só acreditei que ia ser cantor depois de ganhar um carro num concurso da televisão”

O músico angolano apresenta novo disco dia 26 de outubro. À NiT conta como foi crescer no Bairro da Lixeira, em Benguela, até que tudo mudou com um programa de televisão.

Do Bairro da Lixeira, em Benguela, para o Pestana Palace, em Lisboa. A viagem do músico angolano, Matias Damásio, até chegar ao hotel favorito de Madonna — onde a cantora norte-americana ficava antes de se mudar para a capital portuguesa — demorou pouco mais de uma década. Cresceu num dos bairros mais pobres de Angola e foi criado por uma avó porque os pais tiveram de fugir da guerra e foram obrigados a escolher o filho que queriam levar. Optaram pelo mais novo.

Matias ficou no bairro e isso mudou-lhe a vida. Como Eusébio aprendeu uns toques de bola com laranjas, Damásio começou a ouvir música nas casas-alambique que abundavam no bairro. Cada uma com as suas colunas a debitarem som para quem andava nas ruas esburacadas. Ser artista não foi um acaso, foi pura necessidade: “precisava de um trabalho”.

Qual foi o ponto de partida do novo disco, “Augusta”?
Comecei a compor estas canções há um ano e meio. Queria fazer uma homenagem a minha avó Augusta, uma figura muito importante na minha vida, na minha infância, quem me transmitiu os meus primeiros valores. Com ela aprendi que o amor é o sentimento mais importante do mundo. E isto começou com algumas canções de homenagem, é um disco de amor.

Um disco romântico?
Amor de todas as esferas. Começámos a gravar há um ano a gravar e juntei três mulheres que admiro muito: A Pérola, de Angola, a Cláudia Leite, do Brasil, e a Aurea, de Portugal. Era uma coisa que já queria fazer há muito tempo, mas não me sentia ainda capaz disso. Espiritualmente estou no momento certo.

E subir ao palco do Altice Arena pela primeira vez? O que espera desse espetáculo?
Já fui ao Altice Arena ver concertos. Adoro a sala, não pela acústica mas pelas pessoas. A grandeza desta sala é o público. Recentemente participei num concerto solidário pelas vítimas de Pedrogão, já lá fui ver concertos, participei noutros, com o Paulo Gonzo. Achei que era o sítio certo para lançar o disco, convidar algumas pessoas, e juntar estes fãs que fui conquistando nestas tournées.

Crescer num meio de pobreza extrema influenciou a sua música?
A minha família era muito pobre, com problemas muito básicos. Vivi num bairro com muito álcool, com muitas casas de alambique, em Benguela, no Bairro da Lixeira. Nasci em 1982 e ainda apanhei a guerra. Tinha sete anos e fiquei com a minha avó porque os meus pais tiveram de levar o meu irmão mais novo, o Jaime, que na altura era bebé.

Mas nessa altura pensava em música? Sabia tocar algum instrumento?
Apesar das minhas circunstâncias, que podiam ter-me levado a ser bandido ou delinquente, sempre tive o carinho das mulheres, da minha avó, mãe, tia. E nessa condição de vida isso faz toda a diferença, quando se tem amor, abraço, um beijo, alguém que se preocupa. Eu tive um anjo da guarda durante toda a minha infância que foi a minha avó Augusta. E as canções deste disco são feitas neste espírito.

No meio dessa infância tão dura alguma vez pensou que poderia ser o Matias Damásio que hoje as pessoas conhecem?
A musica sempre fez parte de mim. Costumo dizer que sou um artista feito sem rádio e sem televisão em casa. No meu bairro pobre havia umas vinte e tal casas que vendiam bebidas alcoolicas fermentadas, e todas elas tinham musica. De todo o tipo. Ias para a rua e estavas no som, era uma festa. Quase fui obrigado a ser artista, comecei a tocar em panelas e latas, mas nunca imaginei ser uma pessoa grande, um artista. Os mais velhos do meu bairro não me deixavam sonhar muito. Tinham medo que as pessoas ficassem doentes com as expectativas. A condição era muito má, muitos tinham fracassado. Se dizias “quero ser piloto” levavas logo um soco. Não nos era permitido sonhar nas nossas circunstancias.

E hoje está hospedado no mesmo hotel onde Madonna ficava antes de se mudar para Lisboa.
Comecei a sonhar com o Altice Arena há pouco tempo. Os meus sonhos são com base nos passos que dou todos os dias, sonho nas minhas proporções. Ainda me lembro de como tive o meu primeiro carro.

Que carro era?
Um VW Polo que ganhei num concurso. Tive-o durante 24 horas, vendi-o logo. Tinha 18 anos e precisava de dinheiro para resolver problemas financeiros. Ganhei-o na Gala Sexta-Feira, da televisão publica de angola. Logo no primeiro ganhei um carro com zero quilómetros. Foi assim que decidi seguir uma carreira na música. Achava que ia poder sustentar a família. A arte complementa a minha vida, mas eu precisava mesmo era de um emprego. Muita gente só acredita no talento quando passa a primeira musica na radio. Eu acreditei no dia em que ganhei um carro num concurso.

O que fez com o dinheiro do carro?
Comprei um terreno, ajudei o meu pai a construir uma casa. Sempre tive um lar muito debilitado. Comprei também umas sapatilhas, T-shirts, calças, tudo o que me fazia falta.

Já tinha trabalhado?
Sim, em tudo, fui engraxador, lavei carros, escamava peixe na praia, todos os bicos possíveis. Tocava violão na esquina para ganhar dinheiro. Toquei na rua, na praça, no bar.

Quando veio pela primeira vez à Europa?
Há 10 anos, em 2008. Primeira vez na Europa, primeira vez que andei de avião, e primeira vez que saí de Angola. Fui para a Alemanha para o mundial de Futebol. Tinha lançado um disco que foi um sucesso em Angola e acabei por ser convidado para acompanhar a selecção. Não sabia falar inglês, nada. A qualificação de Angola para o mundial foi muito especial para todos os angolanos. A paz em chegou em 2002, mas o sofrimento não acaba quando se anuncia a paz na televisão. 

Ainda volta ao bairro?
Sim, sempre. Comprei a casa da minha avó. Está como sempre esteve, não fiz obras, nada. Gosto de passear, levar lá os meus filhos, contar-lhes um pouco da minha história, do meu percurso, de onde vim. Ainda lá tenho muitos amigos de infância.

E os seus filhos, o que lhe dizem?
A casa esta intacta. Os meus filhos não acreditam que eu vivi ali, que aquela era a nossa zona de brincar. Tenho três rapazes, de 8, 11 e 14 anos.

Uma infância muito diferente da sua.
Eles têm queijo, presunto e leite, que eu desconhecia até aos 14 ou 15 anos. Só ouvia falar. Lembro-me que bebíamos uma lata de coca-cola no natal, e tínhamos de a dividir pelos irmãos. A luta era quem ficava com a lata. Porque no dia seguinte podia exibi-la a todos os miúdos do bairro. Beber uma lata no bairro da lixeira era como andar de avião. Nem sequer a abríamos: furávamos o fundo que para não estragar, era uma coisa preciosa.

Bebiam coca cola e comiam o quê?
A comida era sempre a mesma: carapau e sardinha. Era o peixe que havia. Hoje excluí-os da minha casa. Não permito que se cozinhem em minha casa: já comi disso para toda a minha vida.

Tem uma relação recente com Portugal. Sente-se acolhido e com público para uma sala destas?
Na última digressão chegamos a muitos pontos e lugares, fizemos vários concertos, e agora queremos juntar essas pessoas todas no dia 24 de Novembro. Este espetáculo é a concretização de um sonho, de tocar numa sala mítica e juntar os fãs. Fazer um concerto onde com essa mistura de sentimentos, de culturas, coma comunidade africana que existe em Portugal.

Vai trazer alguns convidados?
O objetivo principal era homenagear a minha avó Augusta. E vou convidar a grande Mariza, Áurea, Pérola e a Vanessa Martin, que pela primeira vez vem cantar este tema a Lisboa. Sinto que era a sala certa e a concretização de um grande sonho. Vamos ter uma plateia sentada, vou tocar violão. Recebi muito do público português, discos de ouros, enchentes, vendas, visualizações no youtube, esta é a minha forma de agradecer.

Surpreendeu-o essa onda positiva à sua volta em Portugal?
Quando editámos cá, a convite da Sony Music, esperávamos algum sucesso, que as pessoas gostassem. Mas “sucesso” é pouco para definir o que aconteceu e o que conquistámos. Foi tudo muito rápido. Hoje vejo 45 milhões de visualizações do vídeo de “Loucos” e nunca deixo de me surpreender. Como com cada enchente, cada disco de ouro, cada platina. Sou artista há mais de dez anos em Angola, fiz muitos concertos, mas o que aconteceu em Portugal superou todas as minhas expetativas.

Ainda se mantém fiel à composição solitária ou a máquina tomou conta do negócio?
Vivo da magia de estar num quarto solitário, com uma viola de 200 euros, enquanto faço uns acordos, choro com as minhas canções e escrevo algumas coisas. Depois é todo um processo quando passamos para a parte de produção. Nos últimos dois anos fiz 200 e tal concertos, fui a vários lugares, tanto em África como na Europa. Antes só fazíamos digressões em Africa, vínhamos raramente para a Europa. Com a entrada em Portugal aumentamos o nosso mercado, que veio acrescentar o nível e o número dos nosso concertos.

E mantém vivo esse lado mais intimista da sua música?
Nos últimos anos vivi quase sempre em hotéis. Mais de 100 quartos, camas diferentes, abrir a janela sem saber onde estou. A viola foi sempre minha companheira nesses momentos. Estou longe da família, dos filhos, estou com muita gente mas na verdade sempre muito sozinho. Estas canções surgem desses momentos. Passo muitas horas em aviões, entre Angola e Portugal, Macau, Moçambique. Há uns tempos fiz uns concertos abertos para quem não podia pagar bilhete, com 60 mil pessoas. E nesses momentos lembrei-me que o grande motor da minha vida é a minha avó. E as canções, e os acordes, os toques, estão muito ligados a essa figura tão importante da minha vida.

Hoje vive em Luanda?
Sim, já há muito tempo. É uma cidade que me adotou, os meus filhos nasceram em Luanda, a condição deles é muito diferente. E venho muitas vezes a Portugal.

Quando chegou?
Há dois dias. Mas ainda estou com Luanda no espírito.

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