Escreveu os textos de “Contra-Informação” ou de “Herman Enciclopédia”, além da série “1986”, com os irmãos Markl. Filipe Homem Fonseca é um criativo à moda do Renascimento: é argumentista, escritor, dramaturgo, músico e realizador.
O seu novo livro — o terceiro romance do currículo — chama-se “A Imortal da Graça”. A edição da Quetzal está à venda por 17,70€ e tem 264 páginas. A Graça é o bairro lisboeta onde sempre viveu, desde que nasceu em 1974, o ano da revolução.
Está habituado a escrever rápido quando tem de ser, mas nos romances prefere demorar o seu tempo e apresentar uma escrita mais amadurecida. As primeiras notas para este livro foram tiradas entre o final de 2015 e o início de 2016, conta Filipe Homem Fonseca à NiT.
Aprendeu a ler com histórias de banda desenhada e criou vários livros do género durante a infância — ainda tem algumas guardadas lá em casa. Mas foi “A Imortal da Graça”, um livro que retrata a situação atual daquele bairro de Lisboa — e também a sua história — o grande pretexto para esta entrevista da NiT.
O facto de viver na Graça tem muito a ver com a razão pela qual escolheu esta história?
Sim, os outros dois romances também se passam aqui na zona. O segundo tem uma parte na Índia, mas o palco principal de todos os livros é aqui entre a Graça e Sapadores.
O que é que a Graça tem de tão literário para si?
Não sei se lhe chamaria literário, mas tem uma fauna muito interessante. E como sempre vivi aqui são as pessoas que conheço melhor. Mesmo que não as conheça, vão ocupando lugares da minha imaginação. E acaba por se refletir nos livros, mas também não sei responder muito bem porque é que acontece. Este é mais específico: a história podia passar-se em várias capitais europeias, mas desta forma acho que só podia ser em Lisboa. Tem a ver com a gentrificação, como os moradores estão a ser arredados das suas casas e só os mais velhos é que vão conseguindo ficar. E tornar a cidade inabitável é preocupante.
Foi essa nova realidade da Graça que o fez querer contar esta história?
Foi muito por causa das obras, longas, que demoraram muito tempo. Achei que era giro a contradição dos meus amigos que ficaram arredados daqui de Lisboa, porque as rendas duplicaram e os senhorios estão mais preocupados em fazer Airbnbs, e ao mesmo tempo o cerco que não permitia que as pessoas saíssem. Foi o ponto de partida para o livro. E outra contradição é que as coisas que tornam Lisboa atrativa aos olhos do mundo exterior são aquelas que se estão a perder. Parece que isto se está a tornar um bocado uma Disneyland. Agora são as tascas gourmet e já não pedes petiscos, pedes tapas. E servem as coisas em tábuas de ardósia e não em pratos. Quando viajo vou à procura de coisas diferentes. Gosto de parques temáticos, mas para isso vou a um parque temático.
Vê isso com preocupação?
Já vi com mais preocupação, depende do dia [risos]. As transformações são inevitáveis, mas a evolução não deveria trazer uma perda de identidade. Mas quando era puto ouvia dizer “as coisas já não são o que eram”. Há é muito a ideia que a pessoa comete erros para não voltar a cometê-los. Isso para mim é tanga. Se não houver memória, não aprendes nada. Se se vai perdendo memória do que eram os sítios, o que é que permanece da sua essência? São perguntas que também não sei responder e tentei colocá-las no livro — que é, acima de tudo, sobre identidade. Acho que há uma crise de identidade que o mundo ocidental atravessa. É a globalização enquanto pincelada sobre tudo e não para sublimar as coisas boas de cada local.
É fácil equilibrar a escrita de um romance com a escrita para televisão ou para outros projetos?
Para mim é essencial a questão de serem coisas tão diferentes, porque me ajuda a descansar. Sei que pode parecer contraditório, mas ajuda-me imenso. Como tenho muita coisa a acontecer na cabeça, é bom saber que tenho caixas onde as posso pôr — apesar de haver coisas que nunca se encaixam em nenhuma.
Atualmente está a trabalhar em que outros projetos?
Numa série de televisão cómica, que há de estrear em abril ou maio; num filme que é um projeto à la longue, que é uma adaptação de um livro que não é meu; e uma peça de comédia que já está acabada — vai estrear a 25 de abril. Estou a fazer mais coisas de escrita mas não me lembro [risos]. Tenho dois esboços de livros que ainda não sei se vão ser romances. Ah, e estou a escrever uma história curtinha de BD. É uma série de livros que a malta do The Lisbon Studio anda a fazer e vai haver um volume, que não é o próximo, para o qual estou a escrever, que está a ser desenhada pelo Pedro Brito. E ando a fazer um videojogo há séculos, vou fazendo.

[read_more_block]
Costuma jogar videojogos?
Consta — não tenho a certeza se é verdade — que o Orson Welles uma vez disse que, se tivesse duas vidas, dedicava uma inteira à cocaína. E com a outra fazia as coisas que fez. Se eu tivesse duas vidas, uma dedicava só aos jogos [risos]. Com a outra fazia isto. O último jogo que acabei é de 2013, mas tenho-o desde o ano passado. Ou seja, tenho lá, vou comprando, hei-de jogá-los. Gosto imenso. É mais saudável do que a cocaína.
Grande parte do seu tempo de trabalho é dedicado à escrita. Tem algum tipo de rotina?
Não [risos]. Tenho prazos e dentro deles tento gerir. Prefiro escrever à noite: ninguém me vai telefonar, ninguém me vai chatear. Funciono melhor. Mas às vezes tenho de fazer de manhã, durante o dia, quando for. Mas não tenho aquela rotina de acordar às nove, sentar-me em frente do computador e começar a escrever. Depende dos projetos. No “Contra-Informação” sabia que às 13 horas tinha de estar a entregar um texto.
Escreve todos os dias?
Sim, mesmo quando não tenho de [risos]. O que é raro. Tem quase um lado de ginásio. O músculo criativo fortalece-se com a prática diária. Se eu for agora ao ginásio morro. Mas mesmo que seja apontar uma ideia no telemóvel, nem que seja isso acabo por escrever.
E escreve sempre em casa, no mesmo sítio?
Sim, não quer dizer que de repente não me venha uma cena, saco do telemóvel e estou duas horas ali a escrever bué. Isso acontece. Parte deste livro foi escrito a descer um rio no Laos, numa viagem de nove horas. É um ambiente muito exótico mas ao fim de três horas de paisagem igual já viste tudo. E de repente tive ideias para isto e estive ali até ficar sem bateria.
Ou seja, escreveu um livro sobre a Graça, onde mora, numa viagem num rio no Laos.
Sim, e não só. Olha, escrevi quase um episódio inteiro da “1986”, a série que fiz com o Nuno e a Ana Markl, também no Laos. Portanto, Benfica de 1986 no Laos de 2017. Não tenho muito aquela coisa… quer dizer, a música pode-me incomodar. Se for só instrumental até consigo apagar. Se forem pessoas a falar depende. Mas o sítio mesmo ideal é fechado no meu escritório, rodeado dos meus livros e da minha tralha, e sou eu e o computador. Aí gosto, à noite. Posso escrever em mil sítios, mas limar tudo é sempre ali. Não tenho distrações. E prefiro o silêncio ou então uma coisa mais ambiental: a banda sonora do “Blade Runner 2049”, por exemplo, embora depois me distraia naquelas partes mais ominosas. Conheço muita malta que vai para os cafés. Eu não consigo, começo a prestar atenção às conversas.
Quando era pequeno, na escola, já gostava de escrever?
Sim, aprendi a ler por causa de BD. Super-heróis. Quis aprender para saber o que se estava ali a passar, além das imagens. E passava muito do tempo a ler. Mais tarde, a escrever, a desenhar e a fazer artes marciais. Se calhar o que tenho feito mais é comédia, e há muito aquele cliché do comediante usava o humor como defesa. Pá, eu nunca fui vítima de bullying [risos]. A ser alguma coisa, fui mais bully. Mas era mais bully dos bullies. Se via alguém a ser vítima, ia lá salvar… embora muitas vezes levasse nos cornos também. Não tenho aquela coisa da comédia enquanto escudo.

Em que queria trabalhar nessa altura?
Por esta ordem: ou super-herói, ou astronauta ou detetive. E assim consegui ser as três coisas [risos], porque a escrever posso ser o que me apetecer.
Por falar em super-heróis, gosta de todos estes blockbusters da Marvel que têm saído nos últimos anos?
Gosto, uns mais do que outros. Os filmes estão com um atraso temático, histórico e canónico de 20 e tal anos em relação aos comics. O “Avengers: Infinity Wars” é muito bom. Mas eu gosto mesmo é dos livros, aos filmes acho piada. Foi anunciado ontem que a Marvel vai fazer quatro séries novas, nem estão a jogar pelo seguro. Vão fazer uma série do Maddock, do Howard the Duck… alguma vez eu pensei que ia haver no mundo uma série de televisão do Maddock? Acho ótimo, mas é de loucos. São coisas que me acompanham desde criança que estão a chegar agora ao mainstream.
O “Black Panther” é o primeiro filme de super-heróis nomeado para Melhor Filme nos Óscares. Está quase a ser a cerimónia deste ano. Tem algum filme favorito desta edição?
Não tenho grande interesse nos Óscares, acho que de ano para ano estão mais inócuos. E esta decisão de passarem no intervalo algumas categorias… é perfeitamente ridículo. Às vezes sinto que se devia passar à estaca zero e começar outra vez. O “Imortal da Graça” também é sobre isso. Quero ver “A Favorita”, gosto imenso daquele gajo e estou curiosíssimo. Gostei muito do filme dos Coen, da Netflix, “A Balada de Buster Scruggs”.
E séries, o que tem visto?
Como não tenho FOMO — aquela coisa do fear of missing out [medo de ficar para trás] —, só agora comecei a ver “Peaky Blinders”. E estou a adorar, é muito bom. Comecei a terceira temporada ontem. Fez-me reconciliar com o Cillian Murphy, não era um tipo de que gostasse muito. Mas a fotografia, a realização, o trabalho com a música… E vi também o “Terror”, uma sériezorra. Foi anunciada agora a segunda temporada.
Se tivesse um orçamento infinito, o que escreveria?
Estás-me a fazer lembrar de um livro que li há pouco tempo, “Os Dramaturgos de Yan”. Não me estou a lembrar do nome do gajo… é do John Brunner. Tens um tipo que pega nas referências de toda uma galáxia e constrói um espetáculo gigantesco de multimédia por toda a galáxia que altera a própria realidade do local onde a representação se desenrola. Modifica a arquitetura, os papéis das pessoas. Altera a realidade temporariamente, mas claro que isso depois tem consequências. Portanto, se fosse um budget ilimitado acho que fazia uma coisa dessas. Fazia uma performance multimédia a nível planetário em que todas as pessoas do mundo fossem atores.
[/read_more_block]